Num tempo de ressurgimento e institucionalização crescente de forças de direita nacionalista e populista, a esquerda europeia parece estar perdida. Não por não ter agenda política ou por estar a sofrer de pouca inspiração no que diz respeito às ideias, mas por se ter deixado colocar numa posição de defesa, de submissão. Desde a então atípica eleição de Donald Trump, em 2016, que a esquerda foi colocada numa posição que lhe é estranha; uma posição que coloca em causa a própria índole e génese crítica do movimento socialista (ou social-democrata, dependendo da realidade política de cada país): de contra-ataque.

A direita, tendo de forma oportuna percebido que uma nova maneira de fazer política estava à janela – a das redes sociais, da utilização de algoritmos altamente personalizados a seu favor, da crescente polarização criada pela própria essência da perspetiva economicista das plataformas da comunicação, da desinformação – não perdeu tempo. Associou-se, galvanizou e criou movimentos digitais capazes de apelar àqueles que, por uma grave falha sistémica por parte dos sucessivos governos democráticos, se desligaram do debate público e da política; percebeu algumas das falhas que levaram a este afastamento e combateu-as de forma populista:

  • A utilização excessiva de um jargão político imperceptível para o cidadão comum;
  • A crescente burocratização sentida pelas populações em relação ao contacto direto com as
    entidades de poder;
  • A falta de soluções para problemas reais;
  • O pudor em tocar em certos temas mais divisórios;
  • O afastamento da esquerda relativamente às chamadas “bases”.

Desde a simplificação de problemas complexos – desigualdade geracional (principalmente derivada da desigualdade económica e da incapacidade por parte das famílias mais pobres de gerarem riqueza/herança), respeito pelas minorias, convencionalização dos direitos LGBTQ+, racismo sistémico e estrutural –, à aproximação do seu eleitorado através das redes sociais (meios de comunicação descentralizados, logo, sem uma filtração institucional que regule os moldes da mensagem), e à escolha de soluções em que a abordagem principal prima por apelar aos sentimentos mais profundos de desagrado do povo, colocando então a mesma classe – trabalhadora, assalariada, de rendimentos abaixo da média – em guerra interna, a direita populista acabou por encontrar uma receita (ainda que perigosa para o próprio sistema democrático) vencedora.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As campanhas da esquerda, ao invés de reforçarem a necessidade de as suas ideias serem implementadas, de colocarem o centro da discussão nas suas propostas e nos seus candidatos, colocaram-se na posição quase de “polígrafo”, de “detetor de mentiras”, de “educadoras”. A esquerda dirigiu-se, por vontade própria, para o campo de batalha da direita; achou que seria fácil desconstruir os argumentos apresentados. Porém, esses cálculos políticos saíram furados; e saíram furados porque a esquerda não percebeu que o problema não eram os argumentos, mas sim a dimensão que os mesmos alcançavam – it was never about the ideas. A esquerda confiou no seu péssimo trabalho, confiou demasiado em si mesma. Tomou uma posição que nunca foi a sua: a da presunção, da superioridade moral.

No entanto, é curioso pensar que o primeiro político a fazer uso da chamada “Big Data” para ganho eleitoral tenha sido, de facto, alguém do centro-esquerda: Barack Obama. Em 2012, Obama investiu mais na campanha digital do que na campanha televisiva ao criar uma equipa de especialistas em engenharia que conseguiram criar uma base de dados de 16 milhões de utilizadores/eleitores indecisos. Com esta “brincadeira”, o ex-presidente dos EUA e a sua equipa foram capazes de mudar a opinião de 80% das pessoas alcançadas.1

Podendo ter as excelentes campanhas de Obama e a sua comunicação política excepcional como exemplo, a esquerda europeia do século XXI preferiu fazer política à la século XX. E não correu bem: a ideologia neoliberal continua a parecer a única resposta (ainda que já tenha dado provas de que não funciona!) que os partidos (até os de esquerda) aceitam, a sociedade individualizada continua a esmagar e esquecer os mais desprotegidos, a solidariedade social está a ser engolida pela lei do “salve-se quem puder” e o fascismo volta a assombrar a Europa e o Mundo.

Em 2007, a propósito desta mesma questão do que é ser de esquerda e do que a esquerda europeia deve fazer para sair do labirinto em que se colocou, Mário Soares escreveu o seguinte: “Ser de Esquerda hoje, a meu ver, para um europeu, não é só ter um passado coerente, anti-fascista, anti-colonialista, a favor dos Direitos Humanos e da igualdade entre homens e mulheres; é ser a favor de uma democracia económica e social (e não de uma “democracia liberal”); é lutar contra as desigualdades sociais; ser a favor de uma Europa Política e Social, capaz de ser solidária para com todas as outros Regiões do Mundo onde se sofre; e a favor das Grandes Causas da defesa do Ambiente, dos Direitos Humanos e da igualdade de todos os seres humanos, independentemente do sexo, opção sexual, raça, religião ou condição social; é ser pelo primado da política sobre a economia, da ética, contra a mistura explosiva do negocismo e da política; é ser tolerante e aceitar o outro, como diferente de nós, partidário do multiculturalismo e da laicidade,ou seja, a favor da separação do Estado e das Igrejas; a favor de um sistema capaz de corrigir as desigualdades, de um Estado de Direito,interveniente, mormente no campo da saúde, da justiça, do ensino, do conhecimento e do aproveitamento dos melhores.

Não podia estar mais de acordo. As ideias fundamentais mantêm-se. É tempo de a esquerda colocar o seu passado ao serviço do presente e do futuro, do que é novo, do progresso. Só assim, sendo fiel a si mesma e tendo noção de que os tempos mudam, pode reerguer-se em força.

1 Lissardy, G. (2017). «Despreparada para a era digital, a democracia está sendo destruída», afirma guru do «big data». BBC News Brasil. Obtido 11 de novembro de 2022, de https://www.bbc.com/portuguese/geral-39535650