A esquerda radical portuguesa tem toda a legitimidade para querer avançar no plano das ideias e até para persuadir quem a quer ouvir. Uma vida democrática sã só tem a lucrar com o diálogo e o enriquecimento mútuo. A convivência democrática vive da abertura a todos que é como quem diz, do livre desenvolvimento das personalidades e tendências. Mas não tem legitimidade para fazer batota, marcando as cartas do jogo. A vida democrática não pode ficar refém de uma dogmática imposta e vendida como se não houvesse alternativas.
Até há pouco tempo, a esquerda radical, tal como o Senado romano, reivindicou sempre uma autoridade resultante dos exemplos do passado. No caso dela, o passado foi a luta antifascista o que, por si só, é seguramente respeitável, mas nada é na conjuntura actual.
Como a vida exemplar dos lutadores antifascistas já não atrai ninguém, sobretudo os jovens imersos na concorrência desenfreada que é a vida actual, sempre a segurar o emprego precário que lhes coube e a tentar manter a cabeça à tona de água para não sufocarem, aquela esquerda tem de lançar mão de outros expedientes.
Quais são eles?
A tentativa de hegemonia ideológica. Passou de uma pretensa legitimidade histórica para uma tentativa de legitimação ideológica. Como já não há a velha «base social de apoio» e os jovens têm mais em que pensar, recorre a todo o tipo de instrumentos, desde pequenos e médios «intelectuais» promovidos, a quem atribui o papel de «orgânicos» (mesmo que nem saibam quem foi Gramsci), a inacreditáveis comentadores televisivos pagos para dizerem enormidades, a uma corja infindável de jornalistas vendidos, a detentores de títulos universitários feitos à pressa, etc… O pior de tudo é que esta verdadeira feira da estupidez e da falta de cultura já assentou arraiais num partido tão respeitável e indispensável como o PS e está a fazer carreira dentro dele. Os novos «tribunos da plebe» arengam, sem perceber que numa democracia cosmopolita, esclarecida, aberta e digital já ninguém os ouve. A sua especialidade é inventar novos temas «impactantes», como dizem agora os jornalistas num português atroz, a que logo atribuem uma importância desmedida como se a vida quotidiana dos portugueses dependesse deles. Tudo vale no mercado da manipulação. Agora que a esquerda radical ficou (mais uma vez) reduzida a um modesto expoente, o que para aí virá?
A (velha) estratégia dos referidos novos tribunos é deturpar esse instrumento de comunicação e de pensamento que é a linguagem.
A linguagem é a mediação entre a realidade e o pensamento. Tanto absorve a realidade a posteriori através das nossas experiências como a representa no entendimento através de operações a priori. Não vou aqui analisar a questão de saber se é logicamente correcta ou incorrecta ou se, simplesmente, nos serve. Há muito que sei que a pragmática ou seja, o alcance dado à linguagem pelo seu uso num contexto intersubjectivo é determinante para o seu alcance. Conheço bem o Husserl da sua segunda fase e o Wittgenstein ainda melhor. Também sei bem o que foi a linguist turn e o seu alcance epistemológico e até ontológico. Seja como for, a linguagem é o principal meio para chegarmos à verdade nas questões práticas. Já escrevi acerca disto e não vou explorar a questão.
Ora a esquerda radical portuguesa, e é isto que interessa, é um caso curioso de transfiguração dos significados linguísticos. Vive hoje disto e para isto. A linguagem que usa é dela própria. É tribal e, portanto, resulta do seu uso. É, aliás, disso que se tem alimentado a sua hegemonia cultural, agora em crise, finalmente. Mas é ao mesmo tempo a sua fraqueza; para a entender é necessário reduzirmo-nos à condição de membros da tribo. Se nos recusarmos aos ritos tribais a hegemonia esquerdista cai como um castelo de cartas.
A esquerda radical portuguesa tem vivido da manipulação da linguagem. Atribui às palavras com conotação política e cultural o sentido semântico que lhe convém, nem que para isso tenha de distorcer o seu significado original e autêntico. Usa os termos a granel de modo a poder organizar o seu limitado quadro mental e lograr impô-lo facilmente aos outros. O objectivo é viver de certezas absolutas e reduzir os outros à posição de espectadores passivos das suas verdades insofismáveis. É o caso claro dos termos fascismo, igualdade, solidariedade, cultura, educação, democracia, ética, etc… A propósito destes termos querem convencer-nos das coisas mais estúpidas e incomensuráveis como se todos fossemos néscios à espera do pentecostes. Valeria a pena fazer um dia um glossário da linguagem esquerdista para evidenciar as suas incapacidades e falsidades. Um glossário é, como toda a gente sabe, uma explicação racional de termos utilizados na linguagem erudita ou comum de modo a que o interlocutor saiba do que se fala e, mais precisamente, conheça o significado das palavras ou dos termos que se utilizam. Está por fazer aquele glossário; teria a vantagem de trazer à luz as alarvidades de que nos querem convencer.
É fundamental levar em conta que aquela esquerda não quer hoje apenas maiorias parlamentares. Se fosse apenas isso, estava perfeitamente no seu direito. Mas a esquerda quer algo de muito diferente e muito mais perigoso. Quer a verdade. A verdade absoluta, sem discussão, sem hesitações e sem crítica possível. Para isso precisa de uma dogmática e, portanto, não hesita em fornecer-nos quadros mentais viciados destinados a impedir o raciocínio e a crítica e lograr assim a hegemonia cultural e ideológica de que se tem alimentado durante décadas. Não hesita em tentar entrar dentro das nossas cabeças e limitar a nossa autonomia mental. Vale tudo, desde truncar a história, estropiar o pensamento político que lhe não interessa, reduzir alternativas, deturpar significados culturais, eliminar a importância do que lhe não convém, manipular a juventude e até a infância, etc…
A esquerda radical tem um medo terrível de perder a influência cultural que ainda vai tendo, se bem que em sectores cada vez mais diminutos. Tudo fará para o evitar. Vale tudo. O limite é a imaginação? Penso que não. Os eleitores portugueses têm dado boas mostras de perceber que o limite é a estupidez.