Muito gente ficou perplexa com a tentativa de formação de um governo minoritário de esquerda da iniciativa do partido Livre, a que logo aderiu o BE e o PC. Tentaram seduzir o PS mas sem êxito, a contragosto, ao que parece, da sua ala esquerdista, conforme noticiou a comunicação social.

Mas não é nada para admirar. Trata-se, antes pelo contrário, de uma atitude perfeitamente coerente com a ideologia deles própria. Na verdade, para aqueles partidos esquerdistas as eleições parlamentares e os seus resultados pouco ou nada representam. Não esqueçamos que, do seu ponto de vista, os cidadãos não são um conjunto de indivíduos independentes e autónomos cada um participando e em condições de igualdade e liberdade na formação da vontade democrática. Nada disso. Os cidadãos estão divididos em classes sociais, resultado da sua diferente posição no ciclo da produção económica. Consequentemente, enquanto a classe trabalhadora não conquistar o poder, obviamente que pela mão segura daqueles iluminados partidos, os resultados eleitorais estão falseados porque exprimem e reproduzem até a divisão de classes, ou seja, perpetuam-na e pior; dão ao regime político delas saído um cabedal de legitimidade «burguesa» que apenas atrasa as coisas e reforça o inimigo. Assim sendo, a vontade popular só tem algum sentido quando o partido que a representa e monopoliza estiver no poder. Até lá qualquer eleição apenas serve para consolidar a burguesia no poder e atrasar as tarefas revolucionárias. Lenine sabia disto muito bem quando em 1918, e antes que fosse tarde, logo dissolveu a assembleia constituinte democraticamente eleita e baniu os outros partidos unicamente porque os bolcheviques nela pouco representavam e servia de barreira à conquista do poder pela via armada e insurrecional.

Aqueles partidos não andam longe disto. O objectivo é um governo de esquerda consolidando no poder uma força destinada a altos voos e preparatória da revolução para ela conduzindo as «massas trabalhadoras», sejam elas hoje o que forem. Logo daí emergeriam novas «conquistas irreversíveis» deliberadas à socapa dentro da tradição dos «verdadeiros» valores de Abril. É este o objectivo. Para que importam as composições parlamentares? São apenas um atraso de vida.

Não quer isto dizer que os resultados eleitorais, mesmo que desfavoráveis aos partidos da esquerda radical, lhes não interessem. Importam para efeitos de potenciais alianças estratégicas, sempre transitórias, de modo a isolar o inimigo principal (que não é para eles um adversário), logo reversíveis se a conjuntura se modificar. Isolado e anatematizado o inimigo principal logo aquelas alianças, já de si frágeis, se modificam para passar à fase seguinte, identificando e isolando o novo inimigo a haver.

Com a recente e significativa vitória eleitoral da direita, a estratégia de alianças recuou e como que voltou uns passos atrás mas em nada se modificou nos seus objectivos e método. Na falta da 5.ª divisão do EMGFA, do Copcon e da benção do famigerado Conselho da Revolução, não têm aqueles partidos outro remédio senão proceder devagar e cautelosamente mas sem nunca perder de vista os objectivos finais. O discurso vai passar a ser a partir de hoje «abrangente» e «inclusivo» pois o trabalho que há pela frente é muito e mais difícil do que há uns anos. O objectivo estratégico agora é seduzir o PS e para isso vão começar por pedir namoro à sua ala esquerdista.

É de surpreender como há pessoas que ainda pensam que aqueles partidos fazem e querem fazer o jogo da democracia política de base parlamentar e liberal própria do mundo ocidental em que vivemos. Que ilusão.

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