Antes de me deter neste assunto tão delicado e sensível – visto falarmos da sacralidade da vida e da liberdade de autodeterminação –, dizer que este artigo não procura falar nem “atacar” nenhum espectro partidário, embora, religiosamente o escreva como católico, o qual não é possível dissociar da minha forma de ver e pensar o mundo.
Quanto ao título deste meu artigo, para mim é óbvio, podendo não o ser para todos. Mais ainda, poderá ser interpretado justamente no sentido oposto, no qual a liberdade do indivíduo tem mais força que o do Estado. Mas não falamos, somente, de liberdade…
Politicamente falando, como padre católico, seria demasiado fácil e imprudente afirmar, estereotipando, que vejo nesta situação, tão sensível e crítica, uma oportunidade para criticar o comunismo ou o espectro partidário de esquerda. Longe disso. Bem sabemos o que a eugenia nazista, enquanto ideologia que nasce do partido conservador nacionalista alemão, de extrema direita – priorizando o Estado –, eutanasiou – contra livre vontade, ressalve-se – genocidamente pessoas de todas as idades, com deficiências físicas, mentais, incapacitadas ou inválidas que ameaçassem a cultura da supremacia ariana.
No entanto, não é menos verdade que, ao abrigo do plano reeducacional comunista, também se cometeram – priorizando o Estado em detrimento do indivíduo –, em algumas regiões do globo, genocídios sem justificação, tais como os perpetrados pela União Soviética e o Partido Comunista Chinês.
Todavia, embora falemos de genocídio – porque se podia sobrepor o indivíduo ao Estado –, no comunismo não se verificou a existência da eutanásia. Daí que não possam ser postos em total simetria estes dois extremos do espectro partidário e bem sabemos que a Igreja Católica muito se apressou em condenar o comunismo, nos seus crimes, porque promovia o ateísmo, e tardiamente o nazismo, porque, aparentemente, ainda seria um regime “católico”.
Com isto quero dizer que quando o espectro partidário se extrema, regra geral o Estado sobrepõe-se ao indivíduo. E se é verdade que com veemência e avidez condenamos o fascismo e o nazismo, não queiramos repetir os seus erros quanto à eutanásia, da qual o comunismo ou o espectro partidário de esquerda não tomou parte. Não podemos condenar a extrema direita – devido a uma hipermnésia do mesmo, face a uma amnésia em relação ao comunismo –, e repetir os seus erros ou só condenar, seletivamente, o que mais nos convém.
Voltando ao tema, a discussão parlamentar sobre a morte medicamente assistida (eutanásia) começou, em Portugal, há já três legislaturas, a qual viria a ser aprovada na generalidade, pela primeira vez, no início de 2020. Este marco foi o início do atual processo legislativo – três anos e três meses de vaivém entre a Assembleia da República, o Palácio de São Bento e o Palácio Ratton, sede do Tribunal Constitucional –, o qual chega ao seu término, com a aprovação do diploma da despenalização da morte medicamente assistida, depois do segundo veto político do Presidente da República, o qual o obrigou – não se valendo do direito à objeção de consciência – a promulgá-lo, no dia 16 de maio.
Deste modo, sob argumentos falaciosos, doces e tentadores, alega-se que se trata da criação de um “novo direito” – como sinal de enormíssimo avanço civilizacional –, desta feita, a uma “morte digna” – como se as demais não o fossem; quase apontando, nas entrelinhas, o caminho da verdadeira e nobre morte natural –, e o respeito à livre autodeterminação do paciente sobre o seu corpo e vida – e, com isso, um aumento do respeito pela vida e liberdade humanas –, quando é justamente o seu oposto: abdicar dos direitos mais inalienáveis e sagrados como a vida, o seu valor, sentido e liberdade. Quer isto dizer que não constitui o ganho de um direito, mas sim, a sua perda.
Posto isto, ressalvo que, não obstante a validade de alguns argumentos que se reúnem em defesa da eutanásia – os quais compreendo e me comovem profundamente –, abrindo a possibilidade a qualquer cidadão de requerer o seu próprio homicídio ao Estado (porque é disso que se trata), ante circunstâncias de agonia física e psicológica excruciantes, lancinantes, inenarráveis nem quantificáveis, abrimos um precedente perigoso e imprudente, com consequências assustadoramente imprevisíveis e funestas, a médio e longo prazo para a nossa sociedade, em detrimento de – sabendo de tantos pacientes que passam por esta dor terrível de equacionar a própria morte perante o desespero da dor e do sofrimento –, investir, com engenho, alma e eficiência, em melhores cuidados de saúde e, dentro desta, da saúde diante da morte, como é o caso dos cuidados paliativos.
Aqui não está em jogo o suicídio – este, qualquer cidadão pode cometê-lo, sem ser punido legalmente, caso sobreviva, sendo naturalmente encaminhado para cuidados de saúde especializados –, mas sim o homicídio, ante determinadas condições que, sabemos pelas experiências de outros países onde vigora esta prática, tendem a flexibilizar-se, a tornarem-se mais abrangentes e a tornarem-se uma opção mais prática e menos exigente para o Estado. Falamos, pois, de um cidadão requerer ao Estado – enquanto conjunto e estrutura de todos os cidadãos –, e ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) para que façam exatamente o oposto do seu dever para com o mesmo.
Com efeito, a eutanásia perverte a lógica da prestação dos serviços de saúde, constituindo-se, assim, como uma antirrazão de ser da mesma: uma absurda contradição. Se a saúde incorporar este antipropósito, os fatores económicos jogarão tendencialmente a favor desta e poderão influir na reconfiguração do próprio sistema de saúde, pois, como se deduzirá, a eutanásia é muito menos dispendiosa do que os procedimentos que visam tratar e salvar vidas, sobretudo as mais precárias. Mais ainda, estando prevista a sua prática, como possibilidade, poderá levar a que o estudo e a qualidade do cuidado da prestação de cuidados de saúde diminuam.
Retoricamente questiono-me: não será de um egoísmo atroz, utilitário, antiético e um retrocesso civilizacional no que à humanidade diz respeito – instrumentalizando a vida humana – cidadãos saudáveis promoverem e “oferecerem” uma “solução de vida final” que potencialmente incentiva e empurra um conjunto de pessoas, em desespero e em sofrimento, para a morte? Não estaremos a ser, como sociedade/Estado, coniventes com uma mortandade que tanto criminalizamos na história, como o descarte dos menos capazes, como seleção artificial do mais forte? Será esta sociedade e estes valores que pretendemos inculcar nas gerações vindouras, ao invés de lutar pela vida, com amor, até ao fim?
Será legítimo e de bom senso requerer a um profissional de saúde que jurou proteger e lutar pela vida, ao abrigo do juramente de Hipócrates, que a tire? Quereremos tornar os nossos médicos em homicidas legais? Quem cuidará também para com a sua saúde mental, quando lhes pesarem as mortes por eutanásia? Queremos confiar que tudo farão pela nossa vida, quando existe também a possibilidade de nos descartar? Essas condições para requerer a eutanásia, quais serão? É verdade, estão no decreto do governo… Quem fiscalizará? Quem assegurará que, com o tempo, seremos nós que a peçamos ou outros o farão em nosso lugar, até familiares diretos, por interesses pessoais? Quem avaliará, imparcialmente, a nossa sanidade mental e cognitiva ao solicitá-la? São tantas as dúvidas e interrogações que não nos podem deixar numa posição de conforto quanto à nossa segurança e saúde.
A partir da minha experiência como padre em contacto com pessoas doentes, seja em lares – na sua maioria pertencentes à Igreja Católica, como um dos principais agentes sociais no que diz respeito aos cuidados de saúde –, seja nas suas residências, aquilo que de longe identifico como problemático são os sentimentos de solidão, abandono, desprezo, inutilidade. Em suma, não se sentirem mais amados nem lembrados por nada nem ninguém.
Esta é a génese de quem, não experienciando os melhores cuidados de saúde – não por culpa dos profissionais de saúde, mas sim por causa de falta de meios e investimentos –, envolto num sofrimento agónico e excruciante, sentindo-se um estorvo, um peso, alguém esquecido pelo mundo, a começar, muitas das vezes, por filhos e netos, acaba por conduzir os nossos doentes a pensamentos suicidas. Por outro lado, não tenho a menor dúvida de que enquanto nos sentirmos profundamente amados, queridos, desejados e valorizados, o suicídio não fará parte do nosso pensamento, mas sim o aproveitar a vida, no seu declínio natural, o mais possível junto dos seus.
Como se vem verificando, os últimos tempos têm-se caracterizado pela revelação de muitos problemas na capacidade de resposta do SNS às necessidades dos portugueses. Alguns desses problemas tomam a forma de deficiências nas urgências, muitas destas sobrecarregadas, tempos de espera inaceitáveis, demissões nas direções dos hospitais, longas filas de espera para consultas no médico de família, exames, cirurgias, a não existência das melhores condições para os médicos continuarem no SNS, etc.
Efetivamente, insistindo em não apostar/investir num melhor SNS (tantas vezes, a única opção passa pelo privado, com encargos económicos elevadíssimos), em melhores cuidados de saúde paliativos, em criarmos as melhores condições de trabalho e reconhecimento dos nossos profissionais de saúde, a não dedicarmos tempo de qualidade para amarmos os nossos doentes, estamos – existindo a possibilidade de requerer a eutanásia – a criar todas as condições favoráveis para que a mesma seja solicitada!
Por certo, o Estado “oferecer”, nestes termos, a eutanásia como possibilidade, de um determinado ponto de vista, até será um ato “altruísta e caritativo”… Se é verdade que quando alguém se suicida há toda uma sociedade que lhe falhou, não é menos verdade que, quando alguém requerer o seu próprio homicídio ao Estado, está a pedir a quem lhe falhou, que lhe falhe uma última vez!
Quando o Estado dá a entender que a melhor solução que tem para os seus doentes é a morte, alguma coisa não está nada bem… O mesmo indicia que a vida – cujo direito é consagrado na nossa constituição –, pode ser instrumentalizada, que é descartável, quando não produtiva.
A pergunta é: a vida de que dispomos – num frenesim alucinante, em que tantas vezes nem os pais têm tempo para os seus filhos – permite ou proporciona/promove tempo salutar em qualidade com os mais doentes e idosos? Não estaremos a subverter a lógica das relações familiares? São estas as questões que deveriam ser debatidas avidamente no nosso parlamento: priorizar as relações familiares em detrimento de um capitalismo selvagem!
Amemos, cuidemos, protejamos, valorizemos, respeitemos, com sinais claros de investimento económico e humano nos cuidados de saúde para com os nossos doentes e, este sim, será o caminho que queremos apontar às gerações vindouras, enquanto caminho que humaniza e dignifica plenamente o momento da morte, construindo uma sociedade mais humana e fraterna, na qual a resposta para o sofrimento é Amar!