“The best way to predict the future is to invent it”
Alan Key, cientista e pioneiro nas linguagens da programação e desenvolvimento de software
Imaginem que estamos numa praia e, de repente, ao longe, vemos uma pequena onda a formar-se. Ao longe, ela parece pequena, mas à medida que se aproxima, vai-se tornando gigante. A onda de que vos quero falar hoje, pequena ao longe, mais não é do que a IA generativa, e o mundo em que vivemos uma enorme praia prestes a ser inundada por algo maior do que as massas de água em movimento que são formadas pelo canhão da Nazaré.
Clayton Christensen, o grande guru das teorias da disrupção, ensinou-nos no tempo devido que é assim que a disrupção funciona – começa pequena para, num ápice e sem que nos apercebamos como, varrer o mercado que é a sua praia. Para Christensen, a “inovação disruptiva” é precisamente esse processo pelo qual algo se enraíza, inicialmente em aplicações simples na base do mercado e em pequenos nichos, para, de seguida, se mover implacavelmente, tornando-se mainstream e expulsando inexoravelmente os incumbentes. A visão de Christensen capta a essência da disrupção como sendo um fenómeno que, começando por ser experimental, de forma abrupta reconfigura o funcionamento de um dado mercado.
Num outro prisma, Magnus Lindkvist apresentou as disrupções como fenómenos que sempre existiram na História. Para Lindkvist, o que sempre tornou algo disruptivo não são as transformações em si, mas a forma rápida e acelerada como certos avanços tecnológicos impõem as suas mudanças, de elevado impacto. Usando a imagem das ondas que se aproximam na praia, Lindkvist responderia, seguramente, a Christensen, dando-lhe nota que é da natureza das ondas atacarem a costa; acontece que, algumas, pela sua dimensão e surpresa, destroem os castelos que construímos na areia, dissipando-os num ápice.
O verão começou e, não obstante a sua fragilidade, não faltarão por estes dias pessoas entusiasmadas a construir castelos na areia. Falo também por mim, que não consegui até hoje fazer uma construção na praia que não acabasse, inexoravelmente, dilacerada pela força do mar, às mãos do destino e do desígnio das marés. Manuel Castells, um sociólogo apaixonado por redes, diria que a nossa sociedade é como um monte de castelos de areia conectados em redes. Aquilo que importa não são os castelos, mas sim o que os une, e o que flui nas redes: a informação. Como na praia, o que importa não são as construções, mas o que nos motiva a edificá-las, e as conexões que elas criam entre as pessoas, na maioria das vezes, adultos e crianças, que usam a areia como motivo para reforçar os seus laços e raízes. O que extraímos daí é que pode ou não ser precioso numa perspetiva da valorização humana.
As diversas fórmulas emergentes de IA generativa são como essas ondas gigantes que se formam no nosso horizonte: elas vão chegar à costa e, com a sua força, vão destruir os castelos na areia que tivermos erguido, alisando o areal sem deixar qualquer marca daquilo que tiver sido, antes, a intervenção humana. Por mais que as queiramos ignorar, as ondas têm esse lado caprichoso, acabando por cumprir aquilo que for a sua própria natureza. Como diria Lindkvist, sempre que há uma nova onda, daquelas que causam um forte abanão na praia, as pessoas tendem a cerrar os punhos e a dizer, “outra onda, não!”. Podemos gritar, praguejar, que as ondas não se importam, fazendo o que têm a fazer. Por isso parte da solução está, como diagnosticou Castells, não tanto no que as ondas vão varrer, mas nas nossas identidades, nos castelos que iremos seguramente continuar a construir quando a onda se dissipar. Porque é da natureza humana, quando o verão chega, as pessoas não deixam de construir os seus castelos.
Mas não basta permanecermos focados naquilo que nos hoje identifica, agarrados ao passado. Se calhar, perante o que se adensa no horizonte, muitos de nós deveríamos largar a pá e o balde, para rapidamente aprendermos e ensinarmos às futuras gerações como devem surfar as ondas que a vida, necessariamente, lhes vai apresentar. Há quem ache que tudo se resolve comprando pranchas de surf; porém, aquilo que verdadeiramente nos vai permitir, a nós como seres humanos, continuar a progredir e a criar sociedades prósperas para todos, é a capacidade de surfar e de enfrentar cada onda, de forma distinta. Precisamos saber ler bem a onda, perceber quando nos devemos levantar para a surfar sem cair. Estar atentos para questionar de onde ela vem, para não sermos apanhados de surpresa com as suas movimentações. Dominar as ondas, por maiores que elas sejam, em vez de nos distrairmos a pensar como vamos proteger os frágeis castelos na areia que na sua efemeridade nos fizeram sonhar. Diria, porém, que dada a proximidade da onda, só os que sabem já hoje surfar estão preparados para o que aí vem.
Nos últimos meses é percetível que a IA generativa decidiu sair do seu nicho experimental para, agressivamente, se adensar numa onda de disrupção que vai ter impacto, não só na maneira como produzimos, mas também como trabalhamos, pensamos e nos relacionamos com o conhecimento. Enganem-se os que ainda acreditam que as tecnologias suportadas em IA generativa vão ser meras fórmulas melhoradas de acesso à informação, uma espécie de motores de busca e indexantes com esteroides. Castells, quando pensou nas suas sociedades em rede, fez referência ao que considerava ser a afirmação dos emergentes “space of flows” uma expansão da noção de espaço, muito para lá da localização física. Para Castells, na era da informação, o fluxo e a troca de informação, capital e comunicação tornam-se mais críticos do que os lugares físicos. Castells argumenta que a sociedade moderna está cada vez mais estruturada em torno desses fluxos, altamente dinâmicos e em constante mudança. A IA generativa, caracterizada pela sua capacidade de criar conteúdo, tomar decisões e se envolver em interações complexas, introduz uma nova camada aos conceitos que podemos ler na “Sociedade em Rede” de Castells. A IA generativa vai criar novos espaços virtuais onde não apenas compartilhamos dados, mas criamos conhecimento, redefinindo não só a forma como nos relacionamos com a complexidade digital, mas também com as nossas próprias limitações cognitivas.
Pelas razões erradas (uma certa vontade de forçar o desmantelamento das estruturas tradicionais), Zygmunt Bauman acertou quando no seu conceito de “modernidade líquida” identificou a natureza cada vez mais fluida e instável das estruturas e dos relacionamentos sociais na sociedade moderna, em que as formas sociais estão em constante mudança convidando os indivíduos a serem flexíveis e adaptáveis.
A onda gigante vai chegar rapidamente à praia, e com ela arrastar os castelos da areia que muitos construímos nos últimos anos. Muitas vão ser as profissões que, num ápice, vão desaparecer ou ver as suas operativas radicalmente alteradas, sem que nada possamos fazer para travar a força das águas. O mais importante, por agora, é compreender a disrupção que se aproxima, tomando em linha de conta não apenas as mudanças tecnológicas que ela vai patrocinar, mas também as transformações sociais, culturais e económicas que se entrelaçam com essa revolução tecnológica: é nesta reflexão que sempre se construiu a resiliência humana face à mudança. Sabendo que, como numa praia, uns vão surfar a onda, enquanto à maioria dos veraneantes, nada mais lhes vai restar do que, pegando no baldinho e na pá, voltar a construir, quando a força das águas amainar, novos castelos na areia, que na sua perenidade acabarão por rapidamente desaparecer, cumprida que esteja a sua perene missão. Olhando para a História da Humanidade e para o funcionamento da natureza, porque desta vez haveria de ser diferente?