“Our generation still carry the old feelings. A part of us refuses to let go. The part that wants to keep believing there’s something unreachable inside each of us. Something that’s unique and won’t transfer. But there’s nothing like that, we know that now. You know that. For people our age it’s a hard one to let go” – Kazuo Ishiguro, Klara and the Sun.

Num tempo em que a inteligência artificial (“IA”) já não é um conceito futurista, mas uma realidade tangível e em afirmação acelerada, tenho constatado que a maioria das pessoas e organizações encara as disrupções focando-se sobretudo nos avanços tecnológicos e no seu potencial para revolucionar indústrias e processos. Contudo, no meio desta narrativa centrada na tecnologia, existe uma faceta crítica muitas vezes subestimada: o papel indispensável das competências humanas. É que há todo um conjunto de competências que têm de ser trabalhadas para assimilar e desbloquear o verdadeiro potencial da IA, em especial, da IA generativa (“Gen-AI”). À medida que nos aproximamos da massificação da revolução da IA, é imperativo reconhecer que o sucesso da Gen-AI não depende exclusivamente de algoritmos e poder computacional, estando profundamente entrelaçado com as capacidades humanas – a capacidade para aprender e se adaptar, a aptidão para desenvolver um pensamento crítico e a responsabilidade de guiar a trajetória da IA com ética e discernimento.

Ray Kurzweil, pensador pioneiro nos campos da inteligência artificial e figura emblemática no cenário tecnológico contemporâneo, tem vindo a defender que o progresso tende a ser cada vez mais disruptivo já que ocorre a uma taxa exponencial, ao invés de linear. Este conceito, conhecido como a “lei dos retornos acelerados” (“law of accelerating returns”, no original) sugere que cada nova geração de tecnologia se constrói sobre a anterior a um ritmo acelerado, levando a mudanças rápidas e profundas na sociedade. Kurzweil defende ainda a “singularidade” tecnológica (“singularity”, no original) argumentando que algures no futuro o crescimento tecnológico vai-se tornar tão rápido e profundo que implicará uma mudança fundamental na vida humana. Kurzweil prevê que, por volta da década de 2040, a Gen-AI irá ultrapassar a inteligência humana, levando a uma era em que humanos e máquinas se fundirão, alterando profundamente as capacidades humanas e a sociedade. Nas suas obras, Kurzweil imagina um futuro em que os humanos integrarão cada vez mais a tecnologia nos seus corpos, aprimorando habilidades físicas e cognitivas. Tal inclui valências como interfaces cérebro-computador, nanotecnologia e IA propriamente dita. Esta fusão entre o corpo humano e a tecnologia irá, para ele, conduzir a uma extensão significativa da vida humana, eventualmente até à imortalidade. Kurzweil apresenta-se como um “otimista”, acreditando que as tecnologias, em especial, as que têm raiz cognitiva (como a Gen-AI), resolverão a prazo muitos dos maiores problemas da humanidade, incluindo doenças, pobreza e destruição ambiental.

As previsões de Kurzweil sobre a evolução da tecnologia têm até à data sido surpreendentemente precisas, não obstante a controvérsia que algumas das suas abordagens acabam por causar, em especial, as que se referem à “singularidade” tecnológica e à longevidade humana. O seu pensamento, porém, explica em boa medida por que razão tantos se assustam com o impacto da tecnologia na sociedade e na vida humana.

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Até que o futuro previsto por Kurzweil (eventualmente) se concretize, há valências humanas que podem, e devem, elas próprias, ser exponenciadas e acompanhar a disrupção tecnológica.

Desde logo, se as mudanças estão a operar – e isso é factual – num ambiente exponencial e acelerado, a melhor forma de combater a “singularidade tecnológica” passa por garantir que as pessoas são preparadas para prosperar neste ambiente dinâmico.

É, assim, fundamental que os indivíduos cultivem uma mentalidade de aprendizagem contínua e adaptabilidade, atualizando constantemente os seus conhecimentos e competências. Porém, o processo de conhecimento para fazer a diferença face à Gen-AI deve estar focado na capacidade crítica e na resolução de problemas (algo que defendi, com mais detalhe, em textos passados, como nas crónicas “Educação e Tecnologia” e “Humanismo como resistência”). A IA tornou-se incontornável na sua capacidade de tratar grandes quantidades de dados, mas o seu sistema cognitivo ainda tem – e terá ainda por um período largo – limitações ao nível do discernimento, algo que permanecerá na esfera da capacidade humana. Ora, à medida que os sistemas de IA forem progressivamente propondo soluções, serão as capacidades do ser humano, de pensamento crítico e de resolução de problemas complexos, que irão permitir avaliar, interpretar e tomar decisões estratégicas. Decisões essas que deverão ser tomadas, não apenas por questões de eficiência, mas também por motivações éticas, obedecendo a processos de “IA by design”. Razão pela qual precisamos dar mais atenção, refletir e preparar as gerações atuais e futuras para que possam estar dotadas de um forte compasso moral e discernimento ético, para assegurar que o progresso obedece a ideais de justiça, sentido de humanidade, esvaziando a pulsão totalitária latente na tecnologia.

É fundamental, finalmente, termos consciência que a IA ocupa um papel incontornável nas tarefas mais lógicas, sendo implausível que, pelo menos num prazo bastante longo, a capacidade de entender e gerir emoções deixe de ser um exclusivo da inteligência humana (não obstante a distopia que podemos ler em Klara and the Sun, de Kazuo Ishiguro). A gestão das emoções (que Daniel Goleman divulgou em 1995, à volta do conceito de Inteligência Emocional), torna-se cada vez mais valioso, num tempo em que assistimos à destruição, pela obsessão tecnológica, das relações humanas e das fórmulas de empatia. O mesmo se poderá dizer do genuíno pensamento criativo e inovador o qual, dificilmente, perderá a sua marca humana. Até prova em contrário, a IA poderá otimizar, mas não inovar no sentido humano. O futuro, assim, pertencerá àqueles que consigam aplicar criativamente a IA, imaginando soluções e aplicações inovadoras.

À medida que a tecnologia e, em especial, a Gen-AI, ganham terreno e tração, torna-se claro que o seu sucesso não é apenas uma empreitada tecnológica, mas também humana. O futuro projetado por Kurzweil, de fusão entre humanidade e tecnologia, não terá necessariamente de ocorrer. Para isso, é fundamental que a disrupção não seja apenas tecnológica, mas que saibamos, também, como seres humanos, acompanhar com sentido crítico, no plano cognitivo, ético, emocional e criativo, as mudanças aceleradas. De uma forma inclusiva: pois o maior risco que corremos é que as transformações humanas só sejam acompanhadas por alguns, esvaziando a relevância económica e social de uma larga maioria que está, hoje, adormecida e alienada em relação ao impacto das mudanças. Algo que poderia abrir portas para novas formas de tirania, e que devemos a todo custo evitar.