Nos últimos tempos temos discutido muito a “inteligência artificial” e pouco a “inteligência humana”, e que tipo de capacidades precisamos, hoje, para enfrentar as disrupções tecnológicas mais recentes.

A inteligência é uma construção multifacetada que se estende muito para além da mera alfabetização ou domínio dos números. A capacidade de ler sem compreender deve ser vista como uma vitória vazia da chamada “vaga de alfabetização” que perseguimos no século XX; o que os novos tempos nos mostram é que o que realmente importa é a capacidade de compreender, refletir e discernir a validade do que se lê ou do que está para lá do que se calcula. De nada adianta saber repetir, de memória, uma norma da Constituição, ou saber calcular uma taxa de inflação, se depois não compreendemos o conceito de direito fundamental ou as raízes e consequências de uma alta de preços. Ora, numa época em que vivemos saturados por informação, o discernimento tornou-se ainda mais crucial, tema sobre o qual me debrucei nas últimas crónicas.

Ocorre que, se a compreensão e as literacias são essenciais, elas não nos protegem contra crenças irracionais, podendo dar lugar a um paradoxo fascinante: mesmo indivíduos altamente inteligentes podem sucumbir a teorias da conspiração. Esta suscetibilidade decorre, sobretudo, de uma confiança excessiva na intuição e na falta de reflexão. Como se observa recorrentemente, a inteligência não imuniza a pessoa contra o seu “viés lateral”, uma tendência para se procurar informações alinhadas com as nossas noções preconcebidas – ou preconceitos (processo também conhecido como “confirmation bias”). Há uma propensão natural, mesmo entre pessoas supostamente inteligentes, para o pensamento conspiratório, impulsionado por uma ilusão de competência intelectual acompanhada de uma baixa humildade intelectual, que leva a muitas das falácias que hoje assistimos (apresentadas como pensamento estruturado). A facilidade como hoje construímos supostos padrões mesmo a partir de dados não relacionados (fruto de uma característica inerente ao ser humano conhecida como “apofenia”), alimenta estes preconceitos, principalmente em tempos de incerteza como os que vivemos (tema particularmente bem explicado, de forma acessível, no best-seller “Freakonomics”, suportado num blogue, ainda em linha).

A inteligência tão pouco é, apenas, a capacidade de raciocinar logica ou criticamente; ela também abrange a nossa capacidade de navegar no reino das emoções. O conceito de inteligência emocional ressalta a importância de reconhecer, compreender e administrar as emoções em nós mesmos e nos outros. Daniel Goleman e Marc Brackett expandiram ainda mais essa ideia, destacando o contributo da empatia, do autocontrole e das capacidades de socialização para a noção de inteligência.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Estas capacidades não são meramente mentais, são igualmente físicas. Eles exigem não apenas a capacidade cognitiva de entender as nossas emoções, mas também a agilidade de as expressar, regular e, às vezes, subverter, dentro daquilo que são as expectativas sociais de “exibição emocional”. Tais expectativas ou regras de exibição moldam a forma como expressamos emoções em diferentes contextos. Daí que não nos comportemos – e bem – da mesma forma ao assistir a um jogo de futebol ou a um espetáculo de ópera, num jantar de amigos ou de Natal da empresa. O não cumprimento dessas regras pode levar à penalização da pessoa, algo que ilustra quão complexas são as dinâmicas de poder e da expressão emocional.

Obedecer a essas “regras de exibição” requer “trabalho emocional”, ou seja, um certo esforço para a pessoa se adequar às expectativas sociais de exibição emocional. Por exemplo, um homem que suprime continuamente a sua dor para se encaixar na construção social de que “os homens não choram” está a exercer um trabalho emocional significativo. Embora obedecer a essas regras possa indicar inteligência emocional, a forma como as quebramos, especialmente quando são tóxicas, também podem significar inteligência emocional e agilidade (algo que é característico das pessoas, v.g., com elevado sentido de humor).

A abundância de informações e a natureza instantânea das redes sociais tornam difícil discernir a validade do que se lê. Num mundo onde as “fake news” e a desinformação são frequentemente propagadas através das redes sociais, as literacias, as capacidades de compreensão e discernimento tornam-se ainda mais importantes. No entanto, não podemos esquecer que mesmo indivíduos altamente inteligentes podem deixar-se levar por teorias da conspiração e desinformação. A facilidade com que as informações são partilhadas e consumidas nas redes sociais, juntamente com a tendência humana para apofenia, podem reforçar os enviesamentos e preconceitos. O mesmo problema poderemos vir a assistir nas soluções de inteligência artificial generativa que optem por beber em bases de dados não estruturadas, elas próprias propensas a enviesamentos.

Além disso, as redes sociais e as plataformas digitais são hoje espaços altamente explorados para uma suposta difusão de ideias e emoções. Para muitos, tornaram-se o mecanismo privilegiado de socialização e partilha de pensamentos e sentimentos, e de autoexpressão. As redes sociais e as plataformas digitais criaram, também, um novo conjunto de “regras de exibição” emocional. O que partilhamos, como reagimos e como nos comportamos online é, em grande parte, ditado por estas regras não escritas. Basta ver as iconografias ou as músicas reproduzidas até à náusea em redes como o Tik-Tok, ou as praxes de linguagem e convenções do LinkedIn, para perceber como as “regras de exibição” emocional estão lá, de forma muito vincada. O não cumprimento dessas regras pode levar a penalidades sociais, desde o mero ostracismo até ao assédio online. A pressão para aderir a estas regras resulta num aumento do “trabalho emocional”, à medida que as pessoas se esforçam para se apresentar da maneira “certa” nas redes sociais, até limites difíceis de suportar, se a exposição for excessiva, e se não houver uma estrutura emocional sólida e bem preparada.

Daí que, em linha com o que fui escrevendo nas últimas crónicas, num tempo em que as redes sociais, as plataformas digitais e as ferramentas de IA acarretam “perigos”, a melhor forma de nos protegermos (para além da exposição moderada e limitada) do seu carácter nocivo, passa, em boa medida, pelo reforço das literacias, das capacidades de compreensão e conhecimento, e da forma como nos distanciamos das “câmaras de eco”, do pensamento tribal, e da tendência crescente para o “confirmation bias”. O desenvolvimento das capacidades associadas à inteligência emocional – como a empatia, o autocontrole e a socialização – são também essenciais para o equilíbrio pessoal, sendo por isso fundamentais nos tempos digitais.

A inteligência que nos é exigida hoje é, portanto, um tapete longo e complexo, tecido com fios de alfabetização, pensamento crítico, acuidade emocional e adaptabilidade. A sua medida não está simplesmente no conhecimento que se possui, mas na forma como o aplicamos na nossa viagem. Requer coragem para desafiar as normas sociais e os travões às mudanças, mas também sabedoria para discernir o que é verdadeiro do que é falso, o que é válido do que não tem qualquer valor. Como Descartes observou, não basta possuir uma boa mente: o mais importante é saber aplicá-la corretamente. Para sobreviver neste novo tempo digital é-nos exigida uma combinação de várias formas de inteligência: a capacidade de discernir a validade da informação, a capacidade de reconhecer e gerir emoções, e a capacidade de nos adaptarmos – mas também questionarmos – normas sociais em constante mudança. Num tempo de redes sociais, plataformas digitais e ferramentas de IA, não basta ser inteligente, há que saber usar todas as nossas capacidades de pensamento crítico e inteligência emocional para navegar num mundo cada vez mais complexo, incerto e conectado.