“Na arte da escrita como na leitura não chegarás a mestre sem primeiro seres discípulo. Mais verdadeiro é isso na vida.”
Marco Aurélio, Pensamentos

Devo ao maravilhoso livro de Louise Perry, Against the Sexual Revolution, o conhecimento da expressão “chronological snobbery”, cunhada por C. S. Lewis para se referir à “aceitação acrítica do contexto intelectual da nossa própria época e o pressuposto de que tudo o que é antigo se encontra, nessa medida, desacreditado.” Corresponderia a uma espécie de “arrogância cronológica” que nos faz acreditar que as ideias do nosso tempo se encontram mais próximas da verdade ou são moralmente melhores do que as ideias dos nossos antepassados, pelo que estaríamos legitimados a olhar com sobranceria e altivez para aqueles que viveram há mil, quinhentos ou mesmo cem anos.

Será esta arrogância cronológica resultado direto de estarmos cativos do mito do progresso que dá forma à modernidade desde as Luzes? A noção linear do tempo pode, de facto, levar-nos a acreditar que estamos a evoluir, que sabemos hoje mais do que os nossos antepassados e que esse maior conhecimento nos tem permitido organizarmo-nos politicamente melhor, sermos moralmente melhores, sabermos viver melhor. E justificaria o atual recurso abusivo a anacronismos de vária ordem.

Mas as últimas décadas têm registado uma manifestação diferente desta arrogância cronológica: é que ela não se tem limitado aos nossos antepassados em sentido amplo, mas tem-se traduzido na luta entre gerações que parece marcar os nossos dias. Vemo-la quando os mais novos acusam as gerações mais velhas de terem ideias desatualizadas, adotarem comportamentos desadequados, usarem palavras erradas. Vemo-la quando os mais novos percecionam os mais velhos como uma fonte de problemas que tem demorado demasiado tempo a secar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há quem seja rápido a apontar que essa revolta geracional não é uma novidade – que, em todos os tempos, os mais jovens questionaram e contestaram os valores e as ideias dos mais velhos. E que, em todos os tempos, os mais velhos se queixaram dos mais novos, pensando que o mundo, sem eles, estaria perdido.

Parece, contudo, haver algo de fundamentalmente novo hoje, e que constitui o inverso daquela arrogância cronológica: trata-se do modo como as gerações mais velhas têm assumido uma espécie de “humilhação cronológica”, com uma desvalorização voluntária da sabedoria que lhes advém de terem vivido mais tempo e de terem, por isso, mais experiência da vida e mais conhecimento daquilo que os seus pais e avós e as antigas instituições lhes transmitiram. Trata-se de um comportamento gerado pelo “culto do novo e da novidade” e que ganha forma numa fetichização da juventude – como se a condição de jovem garantisse um acesso privilegiado à verdade ou a um conhecimento especial e que, nessa medida, as suas ideias, os seus valores e as suas reivindicações devessem prevalecer sobre as sabedorias antigas.

Quando C. S. Lewis cunhou o termo “arrogância cronológica”, fê-lo em resposta à reflexão sobre o lugar do Cristianismo e a pergunta, tantas vezes repetida, sobre “o que teria uma fé com dois mil anos para nos dizer no século XX”. Curiosamente, continuamos a encontrar os mesmos termos no século XXI, quando se pergunta como deve a Igreja mudar para responder às exigências dos jovens, que a consideram desajustada e retrógrada. É verdade que as instituições não podem ser rígidas e, tais como as velhas árvores, devem ser capazes de balouçar com o vento para não quebrarem. Mas fará sentido considerar a mudança de uma instituição milenar em função de um grupo cujo córtex pré-frontal ainda nem sequer está finalizado?

É o ambiente intelectual dos nossos dias. E torna-se difícil não pensar em Platão, que descreve, n’A República, a degradação do regime democrático nestes termos: “O pai habitua-se a ser tanto como o filho e a temer os filhos, e o filho a ser tanto como o pai, e a não ter respeito nem receio dos pais, a fim de ser livre (…); o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em ações; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários.”

O problema desta humilhação cronológica é que ela tem conduzido à perda de uma dimensão fundamental das sociedades humanas: o papel que os mais velhos desempenhavam na orientação dos mais novos, o aconselhamento que resultava da partilha da sua experiência e que permitia aos jovens terem linhas orientadoras sobre como viver. Neste sentido, temos falhado aos mais novos quando lhes entregamos nas mãos a responsabilidade individual pelas suas vidas – como se eles soubessem, por si próprios, viver corretamente. Na verdade, a ideia, muito popular nos nossos dias, de que devem ser as crianças e os adolescentes a tomar, autonomamente, decisões importantes sobre a sua vida – traduzida na fatídica pergunta “o que te faz feliz?” – é contrária a tudo aquilo que sabemos sobre a natureza humana, o funcionamento do mundo e a conquista da felicidade.

Na história da humanidade, tivemos sempre anciãos, xamãs, gurus ou padres, professores e pais com a responsabilidade de orientar, aconselhar, mostrar o melhor caminho. Eram eles que ensinavam as lições fundamentais, como reconhecer que o sofrimento faz parte da vida, que devemos fazer sacrifícios hoje para colhermos os frutos amanhã e que a felicidade não é o farol que ajuda a orientar uma vida boa – mas é aquilo que sentimos quando já sabemos viver bem.

Invertemos a ordem das coisas e o resultado é o vazio. Tornou-se, por isso, popular ridicularizar o discurso de coaching e da positividade, os livros de autoajuda e os influenciadores digitais (e é verdade que muitas vezes se põem a jeito); e preocupamo-nos com a popularidade das aplicações digitais de psicologia e das consultas para terapia de casal (e é verdade que há um excesso de psicologização). Mas tudo isto parece ser um sintoma de um mal social maior: a dificuldade de viver num mundo tão complexo e exigente sem qualquer orientação. Tudo isto parece ser uma manifestação daquilo que Émile Durkheim designou como anomia, uma condição social que se gera quando faltam as normas sociais necessárias para o sentimento de identidade, pertença e comunidade de que a natureza humana necessita.

Os Antigos sabiam que se aprendia a viver por mimesis e consagravam, nessa medida, modelos que deviam ser imitados, e cantavam e contavam as histórias com as quais aprendíamos a viver. Já nós, temos falhado aos nossos jovens, provavelmente porque a tarefa não é fácil: exige que substituamos a indiferença e a apatia confortáveis pela responsabilidade coletiva. Talvez seja, por isso, uma boa resolução para o novo ano. Votos de um bom ano de 2025.