O liberalismo está debaixo de ataque. Este ataque não vem da suposta “superioridade” do modelo político chinês, ou de líderes autoritários como o Erdogan na Turquia ou mesmo da ascensão dos movimentos populistas de direita no Ocidente. Estes, quando comparados com o novo opositor, não passam de pálidos adversários e, na realidade, não constituem uma verdadeira ameaça ao nosso modo de vida liberal, ao contrário do que os meios de comunicação social, ou do que a esquerda radical, querem fazer-nos acreditar. O ataque parte do pensamento teórico crítico enraizado na esquerda radical e pós-modernista que tem vindo lentamente a tomar conta das nossas escolas, das nossas universidades, dos meios de comunicação social e de Hollywood desde os anos 80 e 90.
O último incidente que despertou a minha atenção foi aquele que levou a que a aclamada vencedora do Prémio Booker Internacional de 2020, Marieke Lucas Rijneveld, fosse impedida de traduzir para holandês a próxima colecção de poesia de Amanda Gorman, graças à onda de indignação gerada nas redes sociais contra a editora por esta ter escolhido uma escritora branca para traduzir poesia da autoria de uma escritora negra. Se o leitor está lembrado, Amanda Gorman foi a jovem poetisa negra que ocupou todas as manchetes na cerimónia de tomada de posse do presidente Joe Biden. Aquela multidão rancorosa, germinada nas redes sociais, considerava que apenas uma “artista activista, jovem e assumidamente negra” poderia realmente compreender as verdadeiras lutas da comunidade negra. Assim, e de acordo com os seguidores da teoria crítica e da crítica étnica os brancos são todos “racistas”, principalmente se não admitirem que o são, e não poderão compreender as lutas e a exploração sistemática a que os negros foram sujeitos. Os brancos não têm agora, aparentemente, qualquer autoridade moral para poderem traduzir o trabalho de uma pessoa negra. Mas que loucura é esta?
Porém, outros exemplos igualmente ridículos abundam e o problema é que estas vozes não só falam cada dia mais alto, como também geralmente conseguem o que querem. O comediante Kevin Hart foi forçado a desistir de apresentador da cerimónia dos Óscares, quando alguns dos seus tweets antigos, de há muitos anos, com calúnias homofóbicas vieram à tona, e não foi apenas forçado a renunciar, teve também de se desculpar publicamente muitíssimas vezes, tendo ainda sido publicamente envergonhado também repetidas vezes. O actor Matt Damon foi responsável por incendiar as redes sociais quando afirmou que a agressão sexual ocorre dentro de um determinado espectro e que ser violado ou molestar uma criança não é a mesma coisa que dar uma palmadinha no traseiro de alguém e que, embora ambos devam ser confrontados, não devem ser confundidos. Martina Navratilova foi alvo do ódio de uma multidão online por alegar que não é justo que mulheres transexuais, que passaram por uma puberdade masculina, possam competir em pé de igualdade no ténis feminino de alto nível; Germain Greer (um ícone do feminismo) foi declarada não feminista por se atrever a dizer que “homens transexuais pós-operados não são mulheres”. Estas são ocorrências diárias.
Sofro de duas alergias cognitivas: sou alérgica à estupidez e à injustiça. Para vos poupar à descrição teórica deste movimento que é demasiado densa, bizarra e, até, por vezes, totalmente incompreensível – pelo menos Karl Marx é mais legível — tentarei desenhar um esboço a traço largo deste movimento. Os pensadores críticos, também conhecidos como teóricos de esquerda radical/pós-modernista/neomarxista (faça a sua escolha), auto-retratam-se como guerreiros da justiça social, lutando por uma sociedade mais justa e equitativa para todos. Um objectivo digno e indiscutível.
Mas esse é o belo papel que embrulha a caixa; o que está dentro da caixa não corresponde à beleza exterior do embrulho. Por outras palavras, o que estes pensadores críticos têm vindo a defender não é, na realidade, o que dizem que estão a defender. Teorias críticas de justiça social não se destinam a defender o como tratar as pessoas com igual respeito ou a levantar preocupações com discriminações de raça, género, sexualidade e assim por diante, ou até a tentar tornar a sociedade mais justa. Estes seriam os objectivos tradicionais da própria justiça social. A teoria da critica da justiça social (critical social justice theory) afirma que a sociedade se encontra estratificada em linhas correspondentes aos vários grupos sociais e que essa desigualdade está profundamente enraizada no próprio tecido social. Defende a revolução social como a única forma de conseguir que se operem mudanças. O objectivo principal é o de substituir o nosso sistema social actual, por um outro que eles mesmos criaram. Querem uma revolução, não a igualdade de tratamento numa democracia liberal.
Advogam a necessidade dessa revolução baseados na crença de que não se pode confiar nas pessoas para que façam as escolhas certas. Uma dieta continuada de bens e imagens de consumo cegou-os. Michel Foucault e outros preocuparam-se com o facto dos meios que usamos para obter conhecimento e comunicá-lo serem pouco mais do que instrumentos de poder que por si mesmos criam injustiça. A solução apontada foi a de desconstruir o conhecimento e a linguagem com vista à nossa própria emancipação. Os seguidores da teoria crítica não só concordam com isto como deram ainda um passo à frente ao tentar levar a cabo uma reengenharia da sociedade de acordo com a sua versão de justiça social. Destroem a nossa liberdade de pensamento, de escolhermos como e o que quisermos e de sermos os árbitros das nossas próprias vidas. Prometem-nos algo “melhor” em troca da nossa liberdade. Os ideais do humanismo liberal e da autonomia liberal (que sustentam que as pessoas são livres de tomar decisões racionais independentes que determinem o seu próprio destino) são vistos como um mecanismo para manter os marginalizados no seu lugar. Por outras palavras, vêem o liberalismo como algo que, ao obscurecer formas maiores de desigualdade estrutural, só serve para “enganar” as pessoas fazendo-as acreditar que têm mais autonomia e escolha do que realmente têm.
O propósito destes pensadores da teoria crítica é o de desconstruir as sociedades liberais e de reconstruí-las como sociedades de justiça social onde eles, e somente eles, terão o poder de determinar o que está certo e o que está errado para todos. Como pretendem consegui-lo? Aplicando e veiculando as suas teorias tão alargadamente quanto possível. A crítica cínica constante é um solvente que pode dissolver qualquer coisa, inclusive as sociedades liberais. O objectivo é criticar tudo, mesmo quando não faz sentido fazê-lo e particularmente nos momentos em que isso é injusto. Percebem que o ponto forte de uma sociedade liberal é também e paradoxalmente o seu ponto mais fraco: é uma sociedade que convida avidamente à crítica. A alquimia de uma sociedade liberal consiste em examinar constantemente o que faz para que, se e quando errar, possa admitir o erro e corrigi-lo. Foi precisamente esta alquimia que originou a modernidade e o progresso.
Os teóricos críticos sabem uma coisa: que só precisam de mobilizar um grupo suficientemente grande que reclame constantemente a forma como a sociedade liberal os explora ou engana. Não precisam de oferecer soluções; nem tão pouco precisam de entender a dinâmica por detrás de tal posição. Necessitam apenas de exibir as suas queixas constantemente e de fazer com que tudo pareça problemático. Há-que ensiná-lo em toda a parte e torná-lo um imperativo moral.
Tudo isto pode soar como uma teoria abstracta obscura que não irá avante no mundo real. Infelizmente, este não é o caso. Estas teorias são cada vez mais leccionadas em universidades e em escolas do mundo Anglófono. A maioria das universidades possui agora um responsável pela Diversidade e pela Inclusão que garanta que a sua instituição está “em conformidade” com esta versão de justiça social. Muitos destes fiscalizadores exigem que as pessoas escrevam declarações de compromisso para com a justiça social, especialmente para com a diversidade, a inclusão e a equidade, incluindo até mesmo declarações introspectivas em que reconhecem falhas no seu passado. Estes documentos servem não apenas como teste decisivo político de contractação, como podem também vir a ser potencialmente úteis, caso alguém saia da linha posteriormente. Vem-nos à memoria a Guarda Vermelha do presidente Mao e o ressurgimento da auto-crítica da Revolução Cultura agoral com nova roupagem.
Mas isto não pára nas escolas e universidades. Sociedades jurídicas, muitas empresas e até mesmo alguns municípios possuem agora Agentes de Diversidade. Uma contractação que poderá ser encarada como tendo boas intenções, todavia e em última análise, serve o objectivo de evangelizar uma nova geração de activismo pela justiça social. Grandes corporações como a Google e a BBC demitiram funcionários com base em alegações formuladas em termos de justiça social. Estas demissões surgem normalmente como consequência e após uma enxurrada de indignação “virtuosa” tanto da parte das redes sociais como dos média tradicionais. O Facebook assumiu-se como um tão vigoroso baluarte de censura que chega a bloquear e cancelar contas de pessoas cujas publicações anteriores são descontextualizadas e lidas pelos seus algoritmos desta forma – a chamada “cultura de cancelamento”. O Twitter tem vindo a actualizar as suas regras para poder banir qualquer tipo de discurso, em particular o que chama de “linguagem desumanizante contra grupos religiosos, bem como o do feminismo crítico de género e o de todos aqueles que não aceitem as identidades de género e sexo declaradas pelos transexuais”.
Os artistas são alvos preferenciais, que vêem muitas vezes a sua reputação e carreira serem totalmente arruinadas por algo que possam ter dito há décadas, mesmo quando eram apenas adolescentes. Estes são incidentes quotidianos. Mas não pára por aí. A teoria crítica é aplicada a tudo: caminhadas, tricot, catolicismo, budismo, finanças pessoais, até mesmo ao jogo Dungeons and Dragons. Nada escapa ao seu olhar vigilante!
Existem precedentes históricos. Os filósofos da teoria crítica são uma espécie de versão reclassificada e moderna dos revolucionários marxistas. Enquanto os marxistas acreditavam que o poder estava ligado à riqueza e que, portanto, a reforma exigia que eles se apoderassem dos meios de produção económica; os revolucionários críticos acreditam que o poder está vinculado ao modo como as pessoas pensam e comunicam. Portanto, o primeiro passo é apoderarem-se dos meios de produção cultural, como a educação, a comunicação social, a arte, a linguagem e a religião. A teoria crítica da justiça social é mais um exemplo de uma longa linhagem de usurpações de poder em benefício próprio, supostamente projectadas para o nosso “bem”.
Os planos mais apelativos parecem normalmente melhores no papel do que na prática. No papel, o comunismo postulou a ideia de que uma sociedade com tecnologia avançada pode organizar-se em torno da cooperação e na partilha de recursos, minimizando assim a exploração humana. As injustiças que surjam das disparidades entre vencedores e perdedores do capitalismo podem ser eliminadas. O argumento é atraente, teoricamente. Na prática, o comunismo gerou algumas das maiores atrocidades da história. Dezenas de milhões morreram de fome, foram fuzilados, presos ou mortos – um excelente exemplo de como as nossas melhores teorias podem falhar catastroficamente na prática, mesmo quando motivadas por uma visão idealista de um bem maior.
Esta nova forma de justiça social não é comunismo, mas tem algumas semelhanças com ele. No papel, podemos eliminar o sexismo, o racismo, a intolerância, e a injustiça. Podemos refazer a nossa sociedade a partir do zero para que seja mais justa e socialmente equitativa. Ninguém ficará para trás. Todos partem de um mesmo ponto comum. Todos serão tratados com justiça e respeito. Esta é a teoria. Na prática, o que pretendem fazer é descartar a nossa tradição liberal, a mesma tradição que derrotou os nazis (o que, desprovidos de ironia, chamam agora aos seus detractores); os mesmos valores que colocaram o homem na lua, que acabaram com a escravidão e que inventaram a medicina moderna.
A justiça social exige que rejeitemos a liberdade humana por um “bem maior”; exige que todos sigam a linha do partido em detrimento do seu próprio juízo de valor. Os activistas da justiça social acreditam que estas mesmas liberdades “obscurecem e mantêm a opressão”. Exige que todos nós nos comprometamos com uma luta vitalícia destinada a desmantelar a nossa própria cumplicidade. O seu objectivo: o de criar uma sociedade utópica. Mas todas as utopias são distopias. Qualquer historiador pode facilmente atestá-lo.
Desnecessário será dizer que os limites da liberdade numa sociedade socialmente justa virão a ser definidos pelos teóricos críticos, não por si, por mim ou por qualquer outra pessoa que deseje simplesmente seguir a sua consciência. Os seguidores da teoria crítica tomaram em mãos a função de escrutinar cada artifício cultural em busca de injustiças ocultas: no discurso, na comida, no traje, no texto, no desempenho, nos resultados. Ambicionam aplicar uma crítica cínica aberta e constante a tudo, até que o edifício do liberalismo entre em colapso. Não há nada que possa resistir por muito tempo à crítica cínica consistente aplicada a tudo: nem a arte, nem a masculinidade, nem a sociedade como a conhecemos, nem uma instituição, nem uma nação, nem o liberalismo.
O liberalismo, pelo contrário, é pela liberdade individual. Está alicerçado na crença no indivíduo e na sua dignidade; na convicção de que as pessoas devem ser julgadas pelo conteúdo do seu carácter, porque isso é o que determina quem elas realmente são. O liberalismo acredita na universalidade – que existem direitos inalienáveis que garantem o que significa ser humano. O liberalismo é, em última analise, um sistema de gestão de conflictos que permite a existência de uma sociedade avançada. Funciona garantindo a liberdade de cada um de falar ou não, de adorar ou não, de discordar ou não, de pensar por si e de usufruir da sua propriedade como bem entender.
O liberalismo edificou o mundo moderno nos últimos cinco séculos. Com ele trouxe as mais baixas taxas de mortalidade infantil, as mais baixas taxas de pobreza, o maior acesso à saúde, à vida, à liberdade e à demanda da felicidade, que o mundo já viu.
Ao olharmos para trás verificamos que tanto Francis Fukuyama como Samuel Huntington estavam errados quando o Império Soviético entrou em colapso em 1989: o primeiro profetizou o “fim da história”; o segundo que haveria um choque de civilizações. Aquilo a que assistimos hoje é uma guerra cultural gerada no seio do próprio liberalismo. Todos aqueles que prezam a liberdade necessitam de acordar para este facto, antes que percamos tudo o que conquistámos.