Haverá poucos países no mundo desenvolvido que encarem o liberalismo com tanto cepticismo como nós. Nunca o compreendi muito bem. Podemos dizer que este medo provém, em parte, da identificação incorrecta do liberalismo com o neoliberalismo, duas propostas políticas radicalmente diferentes, mas que parecem estar equiparadas na mente da maioria dos nossos concidadãos. O liberalismo não visa destruir o Estado Social. Não pretende aliar-se aos “ricos” ou aos grandes interesses capitalistas à custa da desgraça dos pobres. Não é imune ao sofrimento dos membros mais frágeis da nossa sociedade.

Muito pelo contrário. O Estado Social, como o conhecemos, foi criado por liberais e não por social-democratas ou socialistas como muitas vezes se pensa. Não há nenhum liberal confesso, que tenha vivido no passado ou viva no presente, ou qualquer partido liberal existente que não continuem a defender um Estado Social, em que certos serviços essenciais ao bem-estar dos cidadãos, como a saúde e a educação, sejam assegurados pelo Estado. Um dos maiores defensores do investimento público e do intervencionismo fiscal e monetário foi o John Maynard Keynes, um liberal confesso. Sir William Beveridge, o arquiteto  do “welfare state” inglês, era membro do Partido Liberal e não dos trabalhistas.

Não há nenhum liberal que não defenda um Estado forte, capaz de garantir o estado de direito, a igualdade de todos perante a lei, um sistema judicial eficiente e imparcial, e um Estado capaz de zelar pelo bom funcionamento de um mercado livre mesmo quando confrontado com deficiências de mercado – derivem estas de problemas no fornecimento de bens de interesse público, do poder dos mercados concentrados, de assimetrias de informação ou de externalidades negativas. Não há um único liberal que acredite que um mercado livre deixado à sua sorte consiga vir a produzir ou distribuir recursos perfeita e ininterruptamente. Há que proceder a ajustes regulares. A desregulamentação excessiva acaba por conduzir a mercados ineficientes, onde se acentuam as desigualdades de oportunidade e que, em última análise, trabalham precisamente contra um dos princípios basilares do liberalismo: aquele que assevera que cada indivíduo tem o direito de concretizar todo o seu próprio potencial.

A pretensa associação entre liberalismo e neoliberalismo tem vindo a ser propagandeada de forma consistente e bem-sucedida pelo partido socialista e pelos seus amigos de esquerda mais radicais. No entanto são duas propostas políticas muito diferentes. Talvez isto ajude, em parte, a explicar a razão pela qual é quase um insulto em Portugal referirmo-nos a alguém como sendo um liberal. A ironia é que todos os países que consideramos exemplares e que almejamos imitar – como a Alemanha, a Dinamarca, a Finlândia, a Irlanda, a Suécia e assim por diante – têm partidos liberais fortes. Coincidentemente, todos estes países têm níveis mais elevados de justiça social, um maior respeito pelo Estado de Direito, menos corrupção, e, para cúmulo, os seus cidadãos gozam de maior índices de felicidade. Em suma, o liberalismo, seja ele político ou económico, não é sinónimo de injustiça social.

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Também nunca consegui perceber por que razão acreditamos que os funcionários públicos têm visões mais esclarecidas sobre o bem comum ou que os gestores públicos representam melhor os interesses públicos. Afinal, o que os torna mais iluminados? É verdade que não são influenciados pela motivação do lucro como os privados. Mas, tal como estes, acabam por se enredar nas teias do clientelismo, dos interesses instalados e do tribalismo da política partidária, nenhum dos quais, como sabemos, se pauta pela defesa do bem comum.

O liberalismo assenta na crença fundamental no progresso e na nossa capacidade de construir um mundo melhor. Os liberais tradicionais valorizam o individualismo, a liberdade, a igualdade de direitos, a limitação de poderes do governo, a economia de mercado, a igualdade de oportunidades e o bem comum. O individualismo não significa ter licença para fazer o que nos der na gana ou descurar tudo à nossa volta, desrespeitando o bem-estar dos outros. Infelizmente, a maioria das pessoas conhece pouco mais do que a famosa “mão invisível” da obra extensa de Adam Smith (pai da nossa economia de mercado), segundo a qual o mercado regular-se-ia automaticamente canalizando o interesse próprio para fins sociais desejáveis. Mas, na sua obra anterior a Teoria dos Sentimentos Morais, Smith observou que: “por mais egoísta que se possa admitir que o homem seja, é evidente que existem certos princípios na sua natureza que o levam a interessar-se pela sorte dos outros e que fazem com que a felicidade destes lhe seja necessária, embora, disso, ele não obtenha nada mais do que o prazer de a testemunhar.”

Apesar de Adam Smith ter escrito sobre o papel do interesse próprio nos assuntos humanos, ele considerava que a tentativa de reduzir toda a ação humana à procura desse mesmo interesse era francamente absurda. Smith acreditava que temos uma obrigação moral de ajudar os nossos concidadãos em momentos de dificuldade. O homem não é apenas movido pela ganância, mas por sentimentos de pertença e de estima. O homem valoriza a lealdade, a justiça e a obrigação mutua. Smith até foi um precursor do ensino público.

O individualismo do liberalismo não é a mesma coisa que dizer que não existe sociedade, como muitos à esquerda gostam de frisar. Individualismo é dar o primado ao individuo. Um liberal acredita que todos nascemos com direitos inalienáveis e que todos temos o mesmo valor e o mesmo direito de exercer o livre arbítrio. Uma boa sociedade é aquela que concede aos seus cidadãos o direito de perseguirem os seus próprios objectivos e de alcançarem o seu máximo potencial. Por via de regra, os indivíduos sabem melhor do que o Estado o que é melhor para eles. Isto não significa que não cometam erros. Mas têm a liberdade de o fazer, desde que não prejudiquem os outros.

Como poderemos assegurar uma sociedade como essa? Os liberais acreditam em governos constitucionais, em freios e contrapesos, no estado de direito, na igualdade de todos perante a lei e na existência de certos direitos inalienáveis, como a liberdade de expressão, a liberdade de religião, a liberdade de associação, o direito à propriedade e assim por diante. Acreditam num Estado forte que possa garantir essas liberdades eficazmente. Porém, reconhecem também que o Estado pode representar uma ameaça à liberdade. Daí que defendam a necessidade de um equilíbrio saudável entre o Estado e a sociedade civil.

O liberalismo sempre foi um impulsionador de mudança. Professa uma fé inabalável no progresso humano criado pelo confronto de ideias e por constantes melhorias. Foi o liberalismo que concebeu o mundo moderno e, apesar de todas as suas imperfeições, os seres humanos nunca viveram num mundo melhor. Foi graças ao mercado livre e à globalização que milhões de pessoas se viram finalmente livres da pobreza extrema. No seu muito aclamado livro O Novo Iluminismo, Steven Pinker argumentou contra a perceção pública comum que existe hoje de que o mundo está “perdido”. No mundo industrializado em que vivemos, “as pessoas mais depressa morrerão de obesidade do que de fome”. Desde a segunda metade do século XIX a esperança média de vida global aumentou de menos de 30 para mais de 70 anos. As taxas de alfabetização são agora cinco vezes mais altas. Os direitos civis e o estado de direito são hoje incomparavelmente mais sólidos do que há apenas algumas décadas. Em muitos países, as pessoas são agora livres de escolher como vivem – e com quem. Tudo isto foi alcançado por via da razão, da ciência e do humanismo liberal.

Os liberais defendem que as sociedades podem mudar gradualmente para melhor e de baixo para cima. Divergem dos revolucionários, quer de esquerda, quer de direita, que insistem que, para construir um mundo melhor é preciso primeiro destruir o que temos à frente, partindo da tábua rasa. Divergem dos conservadores porque reconhecem que a aristocracia e a hierarquia, ou melhor, todas as concentrações de poder, têm tendência para se revelar impulsionadores da opressão. Se não fosse o idealismo liberal, o fim da escravidão, a descolonização, os direitos das mulheres, o fim da segregação racial e, mais recentemente, os movimentos LGBTQ e Black Lives Matter nunca poderiam ter ocorrido.

No meio de tudo isto, qual deve ser o papel do Estado? Esta pandemia colocou, mais uma vez, esta questão no centro da agenda política. António Costa acredita que ela veio expor o fracasso absoluto do neoliberalismo, uma proposta política que acredita num Estado mínimo. Na realidade, em Portugal, nunca tivemos liberalismo excessivo – muito menos neoliberalismo. Em Portugal nunca tivemos uma cultura liberal. O que temos é um estadismo excessivo, um Estado que complica a vida dos seus cidadãos com a sua excessiva burocracia, “overlapping” de serviços e um peso excessivo de impostos face ao nosso rendimento médio per capita.  Em resultado disto, temos um Estado que é pouco eficiente em encorajar o investimento privado produtivo, criador de emprego, seja ele estrangeiro e nacional, a inovação e o progresso. Acima de tudo, temos um Estado que se deixou cegar pelo seu preconceito ideológico de que a iniciativa privada é má e constitui uma ameaça ao bem comum.

Paralelamente, temos um Estado fraco, onde o sistema judicial é ineficiente e moroso e onde as autoridades reguladoras têm falhado vezes sem conta, sem  nunca terem sido responsabilizadas por isso. Temos um Estado que acredita que o seu papel é administrar empresas em vez de estabelecer regras claras. Temos um Estado que acredita apenas na redistribuição (e falha miseravelmente ao tentar fazê-la), sobrecarrega de impostos os seus cidadãos, incorre  enormes défices, está pejado de clientelismo  e que prefere uma sociedade civil fraca e que dependa totalmente dele. Se o liberalismo fosse um atleta forte de alta competição, o Estado português assemelha-se mais a um atleta gordo e lento.

Acredito num Estado forte, que possa garantir o estado de direito e um sistema judicial eficiente; que acredite e que promova uma economia robusta e que, acima de tudo, esteja ao serviço da comunidade. Acredito num Estado que seja inclusivo, que garanta a igualdade de oportunidades para todos, que avalie as suas políticas públicas pelo funcionamento das mesmas e não segundo doutrinas ideológicas abstractas. O Estado não deveria ser o motor da economia. Deveria sim fortalecer o sector privado, garantir que os seus cidadãos tenham boas qualificações, encorajar o investimento nacional e estrangeiro por meio de políticas fiscais competitivas e evitar regulamentações desnecessárias.

Infelizmente temos um enorme défice de investimento e capital, especialmente de capital nacional. Estamos a perder os nossos jovens profissionais mais qualificados que partem para o estrangeiro em busca de melhores oportunidades. Um país que, já de si, tem uma população adulta subqualificada, quando comparado com os seus homólogos europeus, não pode dar-se ao luxo de perder talentos, competências e qualificações. O Estado deve de utilizar o que o país tem de melhor, seja no setor público, privado o social para melhorar as qualificações da sua população adulta. Finalmente, sem uma economia forte, não poderemos ter um Estado Social com os meios necessários para investir na saúde, na educação, nos serviços sociais ou que cuide eficazmente dos membros mais frágeis da sociedade. Não há justiça social sem criação de riqueza.

Os fanáticos revolucionários de esquerda ou de direita nunca conseguiram melhorar a equidade social nem, tão pouco, contribuíram muito para a justiça social. Têm tendência para se tornar cativos de interesses e geralmente são impelidos por sentimentos de ressentimento ou de ódio.

Acredito numa sociedade aberta, que não se deixe cegar por dogmas ideológicos. Uma sociedade com uma sólida economia de mercado e com um estado social verdadeiramente eficaz. Uma sociedade que invista nos seus cidadãos, sabendo que, estes sim, são o nosso bem mais valioso. Uma sociedade que cuide de quem não pode cuidar de si mesmo. Se tudo isto, faz de mim um liberal, tenho orgulho de o ser.

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