Com a criação da Geringonça em 2015, António Costa criou um enorme problema para o sistema político Português. Antes de mais, sejamos claros: a Geringonça foi um expediente que serviu a Costa para evitar aquele que seria o momento mais humilhante da sua vida política e, ao mesmo tempo, para o Bloco de Esquerda e o PCP, principalmente este último, garantirem que sectores estratégicos para a ‘luta’ permaneciam na esfera pública. Costa quis alterar as dinâmicas de competição do sistema partidário Português para servir as suas ambições.
As consequências da Geringonça irão ser pagas nos próximos anos. E não, não estou a falar da parte financeira, porque, no fundamental, o modelo de seguimento estrito das regras Europeias mantém-se. A austeridade encapotada controla o país, veja-se a esse respeito a diatribe de Pedro Nuno Santos sobre a CP e a dificuldade em comprar rodas. Uma delícia. O principal problema da Geringonça consistiu em pôr fim ao entendimento tácito entre elites moderadas sobre a aprovação de governos minoritários, à esquerda e à direita. A Geringonça polarizou a política Portuguesa, criando um vazio no centro e obrigando a entendimentos dentro de cada bloco político. O PS é governo enquanto a extrema-esquerda quiser. O PSD será governo se, num futuro longínquo, ganhar uma maioria absoluta, o que é manifestamente impossível, ou, tendo uma maioria relativa, se a extrema-direita do Chega deixar.
A ironia da Geringonça foi ter invertido o problema das coligações no sistema político Português. Entre 1976 e 2015, houve uma assimetria política em Portugal, na medida em que a esquerda não se conseguia, ou queria, coligar. Desde 2015, e especialmente com o aparecimento e sucesso do Chega desde 2019, que a direita não se conseguirá, ou quererá, coligar.
A inversão do problema das coligações traz problemas graves à democracia Portuguesa, que apenas um néscio poderá fingir que não existem. Num contexto de fragmentação partidária crescente, PS e PSD precisarão dos partidos pequenos à sua esquerda e direita para governar. Não é apenas o PSD que está em declínio eleitoral. A capacidade de PS e PSD serem a casa comum do centro-esquerda e do centro-direita está a esboroar-se. Tome-se, por exemplo, o caso do PS. Em 2019, depois de anos de crescimento económico e sucesso político, António Costa teve menos 170.000 votos do que José Sócrates em 2009, depois de muito desgaste político e no meio de uma fortíssima crise económica. Infelizmente, em Portugal, ao contrário da Alemanha, onde o enfraquecimento eleitoral da CDU e do SPD tem vindo a ser acompanhado por partidos civilizados e com futuro, com os Verdes e o FDP, os votos vão para o BE/PCP ou o Chega.
Assim, para haver uma rotação de poder, absolutamente necessária entre PS e PSD, o PSD estará nas mãos do Chega. O problema maior é que o Chega viola muitas das normas e valores sociais que regem uma sociedade civilizada e moderna. Será extremamente difícil para a liderança do PSD fazer uma coligação ou mesmo montar um governo minoritário com o apoio tácito de André Ventura. O problema é tanto maior quanto existe um grupo de comentadores e políticos à direita que acha que Rui Rio é o grande entrave para o crescimento do PSD. Nesta linha de raciocínio, substituído Rio, o PSD voltará às vitórias eleitorais absolutas, esmagando o Chega e regressando ao poder. Em minha opinião, esta é uma visão míope. O problema é bem mais estrutural do que uma liderança conjuntural.
Existem duas soluções para o actual dilema do sistema político Português, iniciado por António Costa em 2015. Por um lado, o aparecimento de um partido moderado à direita do PSD, que cresça eleitoralmente de forma a tornar-se o parceiro de coligação privilegiado do centro-direita. Por outro lado, o PS deixa de fingir que o seu programa eleitoral tem mais semelhanças com o PCP e BE e assume que, de facto, as suas diferenças programáticas com o PSD são mínimas. Retomaríamos, então, a normalidade democrática, com o PSD a apoiar tacitamente os governos minoritários do PS e este último a fazer o mesmo para o PSD. Deste modo, criar-se-ia um cordão sanitário à extrema-esquerda e à extrema-direita. O centro vital estaria de volta.
Caso nenhuma destas duas condições se cumpra, receio que assistamos a um perpetuar do PS no poder, o que será muitíssimo negativo para a democracia Portuguesa. Note-se que, em meu entender, um perpetuar do PSD no poder seria igualmente negativo. A rotação de poder é imprescindível para manter a democracia sã e com vitalidade. As elites têm de entender-se nos bastidores, fora dos holofotes para que possam colocar em cima da mesa os problemas de Portugal, deixando os extremistas de fora. Foi assim que Soares consolidou a democracia, garantiu a entrada na União Europeia e lançou as sementes para o desenvolvimento abissal a que Portugal assistiu desde a democratização.