Um dos autores atuais que vale a pena conhecer é o filósofo inglês John Gray, que tem ocupado nos últimos anos um lugar de relevo como comentador político. Parte da sua relevância passa pela curiosidade de se ter movimentado de forma muito livre no espectro político-ideológico, passando da esquerda trabalhista para uma nova direita liberal no final da década de 70, até se tornar crítico do universalismo, racionalismo, progressismo e humanismo liberais, com uma especial reprovação do capitalismo global. Nos últimos vinte anos, os seus textos têm convocado o fracasso do liberalismo e a defesa de uma filosofia política pós-liberal.

Destacamos aqui o livro O liberalismo, na primeira parte do qual Gray se propõe fazer a história deste movimento filosófico, começando pelas suas possíveis origens e contributos iniciais. De facto, a palavra liberalismo surge nas línguas europeias apenas no século XIX, mas poderíamos encontrar algumas das suas raízes na Antiguidade, com os sofistas atenienses, e traçar um longo caminho até John Locke. A sua leitura revela-se fundamental para o esclarecimento de um aspeto que, na discussão pública atual, resulta em invariável confusão: o que queremos dizer quando falamos em liberalismo? E o que significa o qualificativo “liberal” em “democracia liberal”?

No domínio da filosofia e da teoria política, Liberalismo-com-letra-maiúscula (para se distinguir do liberalismo como ideologia política) remete para o paradigma filosófico que tem a sua origem no século XVII e que construiu o vocabulário político que usamos hoje para pensar o mundo. Nesse século, os ideais liberais afirmaram-se em Inglaterra contra o poder das monarquias absolutas e fizeram-no a partir da ideia de direitos individuais naturais (anteriores ao estado). Foi essa ferramenta filosófica que tornou possível assegurar a liberdade individual, na medida em que impunha a limitação do poder político. Liberalismo significava, então, limitação do poder político por forma a garantir liberdade individual.

Ao longo do século XVIII – o século das Luzes –, o Liberalismo filosófico amadureceu a partir desse individualismo, a que se foram juntando os conceitos de Igualdade (política e jurídica), Razão (libertada da influência da Igreja), Verdade (em resultado das conquistas científicas), Conhecimento (como fonte legítima do poder), Progresso (como promessa de futuro) e Universalismo (que resultaria de uma natureza humana comum).

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Ao longo do século XIX, estas ideias permitiram a maturação de um regime político específico, que terá perfeita expansão no século XX: o regime de democracia liberal, que combina o elemento democrático (a vontade da maioria) com o elemento liberal (a garantia de direitos individuais). É este o quadro constitucional da maioria dos países europeus e corresponde a um conjunto de instituições políticas que garantem o respeito pelos direitos individuais, a separação de poderes, a mediação dos conflitos, a rotatividade do poder, a independência do poder judicial – e que está para lá da distinção entre esquerda e direita.

Isto significa que a democracia liberal deve ser entendida como o conjunto das regras do jogo político, sem se confundir com as estratégias concretas que o jogo permite. De acordo com esta imagem, alguns partidos podem respeitar as regras sem validar o jogo (pensemos no PCP), mas a maioria aceita a sua validade, apresentando depois jogadas específicas – que se podem traduzir em menor ou maior carga fiscal, maior ou menor intervenção estatal, etc.

Por oposição, quando falamos em democracias iliberais, queremos remeter para regimes que, obtendo apoio popular através de eleições mais ou menos livres, não respeitam ou ambicionam respeitar as tais regras institucionais que caracterizam os regimes liberais. Trata-se, geralmente, de um processo de erosão: regimes que eram democracias liberais vão-se transformando em democracias iliberais. No contexto da União Europeia, usa-se muitas vezes este epíteto para falar do regime húngaro de Viktor Orbán ou o regime polaco do Lei e Justiça. Mas devemos ser mais cuidadosos quando aplicamos o conceito à Rússia, que não é uma democracia, apesar de o atual regime reclamar legitimidade popular.

Prescindindo da democracia e do liberalismo, a Rússia foi-se afirmando como um projeto político iliberaldurante a última década e sob a liderança de Vladimir Putin. Em entrevista ao Financial Times, em 2019, Putin fez o seu diagnóstico: “O ideal liberal tornou-se obsoleto. Entrou em conflito com os interesses da grande maioria da população.”

Mais do que fazer uma crítica teórica profunda ao liberalismo, Putin convoca aqui uma perspetiva pragmatista: se, em determinado momento histórico, os valores e ideais liberais permitiram avançar um projeto político bem-sucedido no mundo ocidental, eles foram perdendo a sua força e a sua eficácia. Para Putin, o mundo exige hoje novos valores e novos ideais políticos.

Em larga medida, Putin tem razão quando destaca que as ferramentas liberais se têm revelado ineficientes. Podemos usar como exemplo uma das principais marcas do liberalismo: a crença na autonomia humana que resulta da sua racionalidade. Em consequência, a democracia seria o melhor regime político porque respeita um ser humano que usa o conhecimento para formar uma razão esclarecida e tomar decisões informadas. É por esta razão que um dos pilares das sociedades democráticas é constituído pelos valores da liberdade de expressão e de imprensa. Mas este mito liberal não descreve corretamente a realidade. Hoje sabemos que há muitos fatores que interferem no nosso processo de decisão, não consistindo a razão no principal entre eles. A narrativa iliberal, recusando esta visão racionalista do homem e apelando a fatores emocionais, torna-se mais hábil a considerar estratégias políticas – sobretudo em sociedades digitais, como é revelado pelo escândalo Cambridge Analytica.

Se Putin não é um teórico, encontramos, contudo, um quadro filosófico consolidado que permite compreender a sua visão do mundo e que podemos reconhecer na criação do Clube de Izborsky, em 2012. A mais destacada referência desse grupo é Alexandr Dugin, embora o seu papel junto do Kremlin seja alvo de debate. Marlene Laruelle, no livro editado por Mark Sedgwick intitulado Key Thinkers of the Radical Right, diz-nos que, “[c]ontrariamente às alegações de muitos comentadores ocidentais, Dugin não é um membro dos círculos ideológicos internos do Kremlin. Ele é uma figura externa, que pode ser usada e rejeitada conforme é necessário, mas que se mantém mais fora do que dentro”.

Dugin, em entrevista, reclama a sua influência: “Putin chegou ao poder para um terceiro mandato e esse foi o momento da sua decisiva rutura com o liberalismo. Agora Putin aceitou o Eurasianismo e uma orientação para o Centro Radical, aproximando-se cada vez mais da Quarta Teoria Política. É isto que está a acontecer agora [2014].”

A Quarta Teoria Política a que Dugin se refere (apresentada em The Fourth Political Theory) distingue-se das três outras grandes teorias – liberalismo, marxismo e fascismo – e baseia-se nos valores do tradicionalismo, nacionalismo, conservadorismo e identidade, com forte inspiração na Nova Direita Francesa, de Alain de Benoist. Em particular, afirma-se em torno do conceito de Eurásia, civilização na qual a Rússia ocuparia o lugar central.

No início de 2020, Dugin afirmou que a pandemia poderia significar o colapso do paradigma liberal: “O que quer que tenha terminado com o combate ao coronavírus, é evidente que a globalização colapsou. Isto quase certamente poderá significar o fim do liberalismo e do seu domínio ideológico total.” E mesmo que seja difícil projetar a nova versão da ordem mundial, Putin quer ser o ator principal dessa mudança.

Como Jaime Nogueira Pinto tem afirmado, comparar Putin a Hitler é uma caricatura grotesca, se considerarmos o lado muito mais pragmático e realista de Putin face a Hitler. Mas o que não podemos recusar é que há um contexto teórico e ideológico que suporta a visão de Putin sobre a Rússia, o mundo e o paradigma liberal. E quem esteve atento a esse contexto, não considerará a situação atual absolutamente imprevisível ou inacreditável. Como mostra Laruelle, as ideias já estavam lá: “Inspirado por Jünger e Evola, [Dugin] cultiva o culto da guerra como a única ferramenta regeneradora para destruir o velho mundo e criar um novo. A sua visão apocalíptica tem sido particularmente apurada desde o início da crise ucraniana [2014], que ele vê como a guerra decisiva entre o Ocidente e a Rússia e a única forma de uma nova Rússia renascer das cinzas liberais.”