Há um conto do José Eduardo Agualusa, em que um jovem revolucionário, sem coragem para desviar um avião, pretende desviar um elevador para Cuba. Com efeito, se se pode desviar um avião com centenas de passageiros, porque é que não se pode começar por ganhar experiência, desviando um elevador com meia dúzia de pessoas?
Será que o problema está nos manuais revolucionários, que ensinam como desviar meios de transporte para fazer valer motivações políticas ou será que bastaria ao personagem do conto de Agualusa ter parado para pensar se queria ficar na História como revolucionário ou como ascensorista de hotel?
Vem isto a propósito da greve dos juízes que, ao criarem uma associação sindical e ao exercerem o alegado direito à greve, estão a degradar-se de titulares de órgãos de soberania independentes e inamovíveis, em funcionários públicos, sujeitos a um patrão, que lhes paga um salário, em troco de um trabalho subordinado. Que titulares de órgãos de soberania queiram ser funcionários públicos (para o que lhes convém) diz muito do modo como veem a importância e a supremacia dos órgãos de soberania no sistema constitucional português.
O facto de os juízes não se deverem considerar trabalhadores, tal como esse conceito decorre da Constituição, não acarreta qualquer desprimor para com os trabalhadores que, nessa medida, até gozam de mais direitos do que os titulares dos órgãos de soberania. É que ser órgão de soberania é outra coisa. Tem de ser outra coisa. Os titulares dos órgãos soberania não trabalham para o Estado, eles são, em certa medida, o Estado em funcionamento.
Não é o Presidente da República quem determina o seu salário, por exemplo, e nem por isso se admite que este possa fazer greve, como forma de pressão junto da Assembleia da República, para que esta altere o seu estatuto remuneratório. Há muitas maneiras de procurar alterar o enquadramento legislativo e orçamental, nomeadamente quanto às remunerações dos titulares dos órgãos de soberania, mas a continuidade da soberania não pode ser posta em causa pelo exercício de um alegado direito à greve. Em matéria de soberania não há serviços mínimos. Só pode haver serviços máximos.
É interessante notar que mesmo no calor revolucionário do pós 25 de Abril foi aprovado o Decreto-Lei n.º 392/74, de 27 de Agosto, que proibia expressamente a greve dos juízes. Claro que sempre se pode dizer que a Constituição não tem uma norma clara e inequívoca que proíba o direito à greve dos juízes e que é aí que reside o problema.
E, mais do que isso, também se pode notar que a Constituição tem uma norma (art. 270.º) que claramente proíbe o direito à greve dos “agentes dos serviços e das forças de segurança”, ainda que admita que os mesmos criem associações sindicais. Mas será compreensível que estes agentes dos serviços e forças de segurança (bem como os militares) não possam fazer greve e os juízes possam? O que se passa é que este artigo começou por dizer que a lei pode “estabelecer restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva dos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, bem como por agentes dos serviços e forças de segurança”.
Ora, na medida em que o legislador não permitia, à data, a criação de associações sindicais para estas entidades, ficava também impedido o direito à greve, que deve ser convocado pelas associações sindicais. O problema é que depois, através de uma perigosa política dos pequenos passos, passou a permitir-se a constituição de associações sindicais para os “agentes dos serviços e das forças de segurança” mas (ainda) não para militares e agentes militarizados. Assim, quanto a estes continua a estar afastada a possibilidade de recurso à greve, por não poderem constituir associações sindicais, mas quanto aos “agentes dos serviços e das forças de segurança” a Constituição teve de clarificar que podiam criar associações sindicais, mas sem poderem recorrer à greve.
Infelizmente é desta filigrana jurídica que se faz a interpretação de uma Constituição como a nossa, que muitas vezes é alterada ao som da espuma dos dias, tendo em conta, em cada momento, o termómetro das reivindicações sociais que, na altura da alteração constitucional em causa, era mais intensa relativamente aos polícias dos que aos juízes. Mas o facto de se ter clarificado que os agentes das forças de segurança não podem fazer greve não quer dizer que todos os outros cidadãos o possam fazer.
Voltando à Constituição, o ponto de partida deve continuar a ser o de que o direito à greve é reconhecido aos trabalhadores e um juiz não é, não deve aceitar ser e muito menos deve autoconsiderar-se como um trabalhador do Estado, subordinado ao Governo e à legislação laboral. Não é esse o Estatuto que a Constituição lhe dá, não é nesse patamar que o coloca e, por isso mesmo, nem sequer deveriam os juízes criar associações sindicais, por não fazer parte do múnus em que estão investidos uma actividade sindical, com reconhecimento do direito à greve ou sem ele.
Pode dizer-se que o legislador tem sido brando com esta funcionalização dos juízes e que tem permitido a existência de uma associação sindical e o exercício do alegado direito de greve por parte dos juízes. Mas também se pode dizer que uma Constituição que viesse escrever, preto no branco, que os juízes não podem fazer greve poderia ser considerada vexatória da dignidade dos juízes, que se poderiam justamente indignar com a explicitação daquilo que é imanente à superior função que desempenham.
É caso para dizer que não é preciso escrever no manual do revolucionário que não se podem desviar elevadores para Cuba.
Tiago Duarte é constitucionalista e professor de Direito