Quando acreditamos em causas que não ameaçam nada nem ninguém não acreditamos realmente em causas. Assim muito resumidamente, esta foi uma das coisas que o Carl Trueman sugeriu na revista First Things acerca do Roe Vs Wade ter dado a volta (“Christians Should Rejoice Over Dobbs”). Neste caso, enquanto quem se dizia contra o aborto não podia ser associado a uma chatice da dimensão de ele deixar de ser visto com um direito constitucional nos Estados Unidos, estava tudo bem. A tendência é agora toda essa gente ter de amaciar o discurso, tendo em conta que está a ser vista como contra os “direitos reprodutivos” mais essenciais das mulheres. E por isso, até muitos dos que se afirmavam Pro-Life têm de vir a público explicar muito bem explicadinho que não são as bestas que agora ainda mais passaram a parecer.
Já estão a ver onde isto pode chegar: eu posso ser visto como uma dessas bestas, mesmo tendo em conta que estamos em Portugal e o que acontece nos Estados Unidos não nos legisla. Mas quem quer saber desse detalhe se, a partir da realidade americana, que é muito mais a da nossa imaginação do que a realidade do país em que vivemos, posso também ser monstrificado? Desde que me lembro de pensar no assunto, sou contra o aborto. E nunca fiz por esconder isso. Não escondi que era contra o aborto quando numa conferência discordei da Odete Santos na Faculdade de Ciência Sociais e Humanas no primeiro referendo sobre o assunto em 1998. Não escondi que era contra o aborto no segundo referendo sobre o assunto em 2007. De lá para cá passei a fazer parte dos derrotados e, eventualmente, deixei-me cair no tal conforto de acreditar em causas que parecem irremediavelmente perdidas. E isto mesmo tendo em conta que frequentei e tentei envolver-me em algumas das marchas pela vida. A chatice é quando a causa perdida se des-perde um pouco e põe na berlinda aqueles que se tinham confortavelmente resignado à derrota. Por vezes, a causa perdida é a mais apetecida.
Continuo pronto a tentar convencer alguém do mal que o aborto é quando as pessoas se apresentam genuinamente interessadas em discutir. Nos últimos anos concluo que há uma distorção entre o que será este genuíno interesse em discutir o assunto e a expressão pública do que se convencionou ser a opinião da maioria. De facto, as reacções que a internet amplifica dão a entender hoje uma sociedade muito mais hostil a anti-abortistas como eu. Claro que seria necessário estudar se essa amplificação corresponde à verdade e não me parece haver uma urgência nesse estudo (o artigo do Jonathan Haidt na Atlantic, traduzido e publicado recentemente no Expresso, dá-nos um contexto interessante que pode aqui se aplicar, de as redes sociais, na sua aparência de liberdade e transparência, poderem contraditoriamente colocá-las em causa — “Why the past 10 years of American Life have been uniquely stupid”). Mas o ponto deste texto não é a eventual hostilidade que encontramos ao acreditar em coisas. O ponto é outro: quando essa hostilidade, concretizando-se em maior ou mais pequena escala, serve para demonstrar que aquilo que se dizia acreditar, no fim de contas, não se acreditava mesmo.
E como é que esse teste se faz? Não sei. Mas tenho um palpite de que uma crença para ser real tem de nos colocar numa posição de desvantagem. Até estarmos em desvantagem podemos dizer o que quisermos que ninguém poderá aferir. É o exame da desvantagem que tem o dom da revelação (do apocalipse, no grego original). Até sermos testados, tudo o que somos pode ser um fingimento. Não é, por isso, por acaso, que mesmo Deus feito homem tenha sido julgado. Quando o teste veio, Jesus teve de mostrar a sua fibra. Como é que Deus feito pessoa mostrou ser a valer? Morrendo pelo que falava e fazia. O risco de poder morrer por algo que não se fingiu ser é o que distingue um homem a sério ou uma mulher a sério. Também nesta mesma cena de avaliação final, não é casual que a multidão fique do lado oposto de Jesus—a multidão é o lugar onde qualquer pessoa pode fingir o que não é e o exame não acontece.
Não pensem que idealizo martírios para mim. Pelo contrário, sou tão ou mais cobarde do que qualquer outro cidadão. Agrada-me a ideia de que a minha fé não suscite em ninguém o desejo de me agredir. Mas sei que pior do que isso é a agressão que inflijo a mim mesmo quando, em vez de ser o que digo, digo o que outros querem que eu seja. Não desejando qualquer hostilidade, sei que ela tem o número do anjo vingador: aquele que nos devolve à mediocridade da multidão. Do mesmo modo que não é por uma causa ser da maioria que está errada, não é por uma ser da minoria que está certa. A diferença mais substancial, neste caso, é saber qual é a nossa causa mesmo. E, depois, deixar que sejam os números a fazer aquilo que os números fazem. No assunto do aborto, e apesar de não estar assim tão certo do consenso contemporâneo a favor dele, estou absolutamente certo de que não foi nenhum potencial consenso que me impediu de saber o que ele faz: mata.