Acabei de ler com muito esforço o artigo “A Vida Maravilhosa nas Colónias” (Revista Sábado de 20 de Maio) nas décadas de 40 a 70, que fede a ignorância total ou, pior ainda, à tradução de um ódio primário em relação a uns largos milhares de Portugueses que se viram obrigados a abandonar a sua terra de nascimento ou adotada de alma e coração. A grande maioria desses Portugueses, brancos, Indianos, Chineses, negros e mistos nunca tinha pisado o Portugal Metropolitano (nome porque era então conhecido o Portugal na Europa). Muitos dos Portugueses brancos, para já não falar das outras tonalidades de pele, eram já segunda e terceira geração a viver e a amar essas terras de Além-Mar, maravilhosas de calor e chuva, de luz intensa de dia, de escuro de breu à noite, onde a sã convivência inter-rácica era cada vez mais efetiva, onde a amizade se cultivava desde cedo com o pé sujo no matope dos mangais, nas jogatanas de berlinde das três covinhas, nas estradas desenhadas na areia para as corridas dos carrinhos, onde os joelhos se arrastavam na terra para dar impulso aos motores inexistentes, e nas brincadeiras em que o espaço  não era problema nem impedimento das mesmas, invadindo as ruas dos carros, em corridas com os aros das bicicletas já há muito desfeitas. As árvores de fruto, a cana-de-açúcar, os ananases e abacaxis, as mangueiras, os cajueiros, as bananeiras, as laranjeiras, as tangerineiras e dezenas de outras deliciosas e belas árvores que não só estavam a enfeitar os quintais das casas, como terrenos de cultivo a perder de vista, onde se brincava mais a vontade e com maior segurança, como serviam para saciar a fome, mas especialmente a sede depois de tanta correria de baixo de sol abrasador a 40 e tal graus. Isto sim, é que era viver em grande e com luxo.

A maioria desses meninos nunca tinham posto sequer os pés no Portugal europeu nem disso teriam intenção nem necessidade, pois viviam felizes e luxuosamente vestidos de calções e camisas de fora nessa terra de magia e de luxo, sem qualquer dispêndio de dinheiro, pelo que não podem ser designados por “retornados”, quanto muito, refugiados políticos.

Nos finais dos Anos 40 e com o fim da Segunda Grande Guerra surge a cobiça criminosa das enormes riquezas pouco ou nada exploradas destas terras. por parte das duas ou três maiores potências mundiais, bem como o controlo geoestratégico das rotas marítimas do Índico e do Atlântico, que lhes iria permitir dominar o mundo. Mas voltemos às mentiras que o redactor, dolosamente, teve intenção ao colocar no seu medíocre escrito. Sem sair ainda da capa da revista Sábado temos a referir mais mentiras, como haver um cinema em cada bairro. Por acaso contou-os? Nas maiores cidades haveria no máximo três a cinco cinemas, nas pequenas cidades ou vilas do interior poderia haver uma sala de cinema, mas na maioria das vezes só existia uma sala multifunções onde se projetavam alguns filmes. Nessas salas tinham lugar as tardes dançantes ou os bailes de fim de semana, como o do fim do ano. Se fala das festas e lojas de moda nas grandes cidades de Moçambique e Angola, claro que as havia e boas, como em qualquer grande cidade do mundo, mas não no chamado interior desses imensos territórios, por nós designados por “mato”. Depois vem novamente com mesquinha observação de dias de descanso na praia. Se não sabe devia ter-se informado, ou melhor ainda, estudado e entendido, o que para si suponho que teria sido difícil, senão impossível, que tanto Angola como Moçambique tinham um território de tal maneira extenso, tanto em comprimento como em largura e que o “interior” desses territórios distariam do litoral, que o mesmo é dizer das praias, largas centenas de quilómetros. Na altura em que delas fala, anos 40 a 70, essas férias de praia, para as populações que viviam no interior eram sempre uma aventura das grandes. Com as estradas mesmo em condições razoáveis, o que na maioria das vezes não passariam de trilhos lamacentos, teriam que palmilhar largas centenas de quilómetros que teriam de ser feitos em dezenas de horas. Mesmo que houvesse autoestradas como as que conhecemos agora, seria, assim mesmo, necessário viajar em alguns casos várias dezenas de horas.

Para melhor entender o “crime” que cometeu ao escrevinhar tanto disparate, passo sumariamente a contar a vida dos meus pais e por arrasto a minha. A minha mãe, nascida em Vila Nova de Famalicão e criada no Porto, acaba a sua licenciatura em Farmácia nessa cidade com elevada classificação. Pelos livros que devorava, em que alguns falavam nas ações missionárias, resolve acrescentar ao seu curso um de saúde em doenças tropicais, bem como um estágio de pequena cirurgia, análises clínicas, etc.., pensando romanticamente em ir prestar serviço em África nas Missões. Para além de ter arranjado com facilidade um lugar de farmacêutica responsável numa farmácia, prestava assistência num laboratório de análises clínicas no Porto e lá se ia governando razoavelmente bem. O meu pai tirou a licenciatura em Engenharia Agronómica e Silvicultura e por ter tido sempre boas notas, no fim do curso já trabalhava como assistente na Faculdade. Um belo dia, lêem num jornal diário que estava aberto um concurso para licenciados de quase todos os ramos para as colónias. Ambos, sem terem conhecimento do que os podia esperar nessas longínquas paragens, concorreram e depois de muitas peripécias, algumas delas relacionadas com o facto de se estar em plena Segunda Grande Guerra, lá foram parar a Malange, Angola, em 1943. Um tinha 25 anos e o outro, 26 anos.

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A minha mãe foi abrir a primeira farmácia do Hospital de Malange, que nessa altura era todo em madeira e zinco, e a “farmácia” da minha mãe foi construída dias depois da sua chegada, no jardim central do mesmo hospital, em “palhota” de bambu e colmo. A secretária, a cadeira e demais estantes onde colocavam os remédios, eram todos feitos em madeira de caixotes. O meu pai foi colocado como engenheiro “director” numa fazenda de dezenas de hectares a uns 30 quilómetros da “cidade”, onde já estavam dois regentes agrícolas e um guarda-florestal, todos solteiros menos o guarda-florestal, cuja esposa lhes servia de cozinheira. Todos a viver em tradicionais palhotas da região. Só passados dois anos se foram, aos poucos, instalando em casas de madeira e zinco. Os meus pais por lá se encontraram, começaram a namorar e na visita a Angola do Senhor Ministro das Colónias, o Professor Doutor Marcelo Caetano, resolveram casar. Anos mais tarde, depois das primeiras férias graciosas, foram colocados em Moçambique.

A vida destes jovens continuava a ser dura apesar do seu estatuto de licenciados e funcionários públicos. Foram viver, já com dois filhos, para dois quartos do Hospital de Nampula, mais tarde para uma “casa” reconstruída a partir de um armazém, sem grandes condições. Depois foram colocados em Quelimane (após terem subido novamente na classificação da função publica) e foram viver para um outro armazém feito “casa” enquanto acabavam a casa que lhes caberia ocupar. Pode-se dizer que só a partir dos 35, 40 anos começaram a ter “casas do Estado”, dignas dos cargos que ocupavam. Apesar dessas poucas comodidades nunca se queixaram e viviam felizes.

A infelicidade bateu-lhes à porta anos mais tarde, com a morte por insolação da filha mais velha, aos cinco anos (hoje já será muito raro morrer por insolação), seguindo-se outra, a morte de um outro meu irmão, com 11 anos, por atropelamento (nessa altura não havia meios para o operar com sucesso). Esta era a vida de fausto e grandeza com os cuidados de saúde de “grande nível” que os meus pais tiveram que passar, mesmo pertencendo à classe alta do funcionalismo público. Daqui se pode inferir da vida de sacrifícios de muitos milhares de Portugueses, que não pertencendo a esta classe “média alta”, tiveram que enfrentar. Muitos desses milhares de Portugueses viviam e viveram durante muitos anos, em tempo de paz e depois em tempo de guerra, em casas por eles construídas, isolados nas suas “fazendas”, sem luz elétrica, nem água corrente, nem saneamento básico (tudo isto na altura tido como luxos impensáveis de alcançar). Mas viviam felizes e demonstravam-no quando recebiam em sua casa os passantes, que não só tinham cama e mesa farta, como eram “obrigados” a pernoitar num quarto zelosamente preparado para as “visitas”, muitas vezes totalmente desconhecidas dos donos da casa, mas que eram imediatamente tratados como família.

Estas ilustres visitas, na maioria das vezes eram fruto de um motor avariado, de um ou dois pneus furados, de uma bateria seca, de um radiador roto ou de outro percalço qualquer, fruto destas estradas de “luxo” percorridas e partilhadas por homens e animais. Estes carros que percorriam estas autoestradas eram quase sempre de luxo e vindos do stand há uns largos anos. Em pouco tempo eram engolidos pelos largos milhares de quilómetros percorridos, com um ar condicionado de última geração e topo de gama, preparados para os dias quentes e frios – para fazer face aos primeiros, abriam-se as janelas todas, para os segundos serviam as mantas e cobertores trazidos de casa. Tudo isto era luxo, tudo isto era bem-estar e melhor viver. E ninguém se queixava, nem se faziam greves, a vida continuava sempre alegre e feliz. O que era necessário era haver saúde, paz e amor.

O clima e a beleza da natureza ajudava. Para ir passar um fim-de-semana à praia, a 700 quilómetros de distãncia, segundo a escrita do articulista, bastava mandar vir um helicóptero ou um Falcon, depois de se marcar quarto ou suite de luxo, num qualquer resort de nível superior. A ignorância e a maldade que transparece nas linhas que escreve ultrapassa, em largo, tudo quanto é deontologicamente aceitável para um jornalista de vão de escada, quanto mais para alguém que escreve numa revista tida como de referência. A mentira tem perna curta, mas a mentira com dolo pode ser tida como crime. Não pretendo voltar a escrever sobre este assunto, pois não gosto de perder tempo, por ser um bem escasso e que rapidamente desaparece. Mas perder tempo com quem quer escrever sobre o que não conhece e não se esforça por aprender seria, no mínimo, tontaria.

Sou um Moçambicano de nascimento, dos idos anos de 1951. De alma e coração, amante das densas florestas virgens, dos enormes rios que percorrendo quilómetros se dão ainda ao luxo de permitirem ser surfados, de lagos que parecem mares, onde em dias de mau tempo se pode com facilidade enjoar. Sou grande amante da flora e da fauna que adornam esta terra que amo e da qual fui afastado por culpa dos homens que dela fizeram joguete para saciarem os seus maus instintos, a sua ganância e ambição desmedida. Por fim, e não para o fim, pois deles sempre me lembro, desses irmãos moçambicanos de todas as regiões, quando a desgraça lhes bate à porta vinda nas tempestades que assolam este país ou pelas mãos de assassinos sem alma, a soldo não se sabe de quem e que os vêm torturar. Penso e rezo por eles. Penso e rezo pelos grandes Portugueses, que tendo tonalidades de cor de pele diferentes, mas alma tanto ou mais lusa como os demais, foram abandonados à sua sorte depois de terem lutado bravamente pela bandeira verde rubra, sabendo  que seriam as primeiras vítimas das múltiplas ambições dos seus conterrâneos. Sou igualmente Português, orgulhoso da sua História, mesmo quando por vezes não concorde com o rumo que querem que ela tome.