Imagine-se que, em vez de promover cortes temporários concentrados nos salários e pensões de valor mais elevado e que pouparam a população com menores rendimentos, o governo liderado por Pedro Passos Coelho tinha decidido aplicar um corte permanente de cerca de 10% em todos os salários e pensões, sem excepção. Conforme discutido recentemente na Rádio Observador, nesse cenário, no período da “troika”, quantos não teriam saído à rua?

É verdade que as circunstâncias hoje são distintas, mas a principal diferença entre os dois cenários é que os cortes temporários aplicados no período da “troika” foram nominais (ou seja, as pessoas afectadas pelos cortes passaram a receber menos euros do que antes) enquanto actualmente os cortes são reais (as pessoas afectadas – todos nós sem excepção – recebem o mesmo valor nominal em euros mas esses mesmos euros têm um poder de compra substancialmente inferior).

Uma segunda diferença importante — e que aumenta o paradoxo da falta de contestação actual — é que, ao contrário do que aconteceu no tempo de Passos, o corte no poder de compra dos salários e das pensões por efeito da inflação é universal, sem excepções que protejam os portugueses mais pobres, que aliás são os mais afectados pela acentuada subida dos preços dos bens essenciais.

A chave para compreender este aparente paradoxo é o fenómeno da ilusão monetária. Em economia, o fenómeno designa a tendência (que todos temos) para pensar em rendimentos e riqueza em termos nominais em vez de em termos reais (ajustando o valor nominal pela evolução da inflação). Em períodos de baixa inflação, os efeitos da ilusão monetária são em geral relativamente pouco importantes, pelo menos no curto prazo. Mas em períodos de elevada inflação esses efeitos tornam-se significativos e influenciam significativamente a percepção por parte das populações. Politicamente, a ilusão monetária oferece também aos governos em funções um poderoso instrumento para aplicar padrões de austeridade de forma dissimulada e indo muito além do que seria concebível com medidas de efeito equivalente que tivessem de ser aplicadas através de cortes nominais nos salários e pensões.

A ilusão monetária faz com que a austeridade por via da inflação seja muito mais fácil de aplicar do que em termos nominais, ainda que os respectivos efeitos sociais sejam infelizmente mais brutais. Apesar de os economistas neoclássicos se referirem frequentemente ao “nível geral de preços”, a verdade é que tal é uma mera construção conceptual. Na realidade, os efeitos da inflação são assimétricos e o facto de o preço de alguns bens e serviços ser mais rígido reforça a própria ilusão monetária. Os efeitos no poder de compra são assimétricos entre diferentes sectores e categorias de bens e serviços e a penalização de cada família em concreto depende, entre outras variáveis, do respectivo perfil de consumo. Ainda que a inflação afecte todos, os seus efeitos assimétricos agravam as distorções provocadas à economia e fazem com que não afecte todos da mesma forma:

Conforme brilhantemente resumiu Hayek num artigo de 1980 no jornal The Times:

“(…) the harmful effects of an excessive supply of money consist not merely in the changes of the average price level but quite as much in the distortion of the whole structure of relative prices and the consequent misdirection of productive effort which it causes.”

Os efeitos assimétricos da inflação tornam também a atribuição de responsabilidades mais difusa e difícil de perceber do que no caso de cortes nominais aplicados directamente pelos governos a salários e pensões. Ainda que as causas sejam em regra políticas inflacionistas com origem nos governos e nos bancos centrais, perante o aumento de preços é tentador (e politicamente conveniente) culpar a “especulação”, os lucros das grandes empresas ou um qualquer evento circunstancial pela degradação do poder de compra das famílias.

No caso português, não há dúvidas de que o grande beneficiário dos efeitos da inflação foi mesmo o Estado. Com uma estrutura de receitas assente em larga medida em impostos indirectos, a inflação está a produzir uma bonança imediata nos cofres do Estado, o mesmo Estado que nem sequer se digna actualizar os escalões do IRS. Mais: precisamente por via da ilusão monetária, quando forem negociados aumentos para os salários da função pública e para as pensões, esses aumentos serão anunciados como muito generosos ainda que os ajustamentos nominais não cheguem sequer para manter o poder de compra real face à inflação.

É verdade que há boas razões para a contenção nos aumentos de salários e de pensões: além da evidente necessidade de controlar a inflação, a subida das taxas de juro deixa Portugal numa situação especialmente frágil tendo em conta o elevadíssimo endividamento do país e os factores de risco e incerteza no contexto internacional são significativos. Adicionalmente, importa que a folga orçamental gerada pela inflação não seja distribuída apenas por quem vive do Orçamento do Estado. Seria de elementar justiça e bom senso aplicar medidas de alívio fiscal que compensem pelo menos em parte os contribuintes pela forte penalização que estão a sofrer por via da inflação.

Mas a principal consequência da ilusão monetária é mesmo gerar uma espécie de austeridade doce por via da inflação. Uma austeridade doce que permite que o maior corte real de salários e pensões das últimas décadas chegue por via de um governo PS que não enfrenta contestação popular significativa e continua até a liderar nas sondagens.

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