O compromisso democrático e a integridade ideológica são virtudes igualmente louváveis mas raramente afirmadas ao mesmo tempo. Num dia o PCP compara o PM António Costa a um padrinho da máfia. Dias depois afirma a sua disponibilidade para negociar com o PS, nunca assumindo a sua evidente cumplicidade com a transferência de milhões para a banca e com outras transgressões, outrora intoleráveis e merecedoras de uma purga estalinista. PCP e BE não concordam com o PS em questões essenciais mas garantem ao actual governo a possibilidade de implementar algumas medidas que poderiam ter sido propostas pelo PSD ou pelo CDS. No Expresso da Meia Noite (13/07/18), João Galamba disse que todas as sondagens demonstram que o eleitorado de esquerda gosta da geringonça. As sondagens podem reflectir fidedignamente a realidade mas a sua instrumentalização política revela a necessidade imperativa de persuadir a “verdadeira esquerda” a ser leal à coligação neste “admirável mundo novo.” Uma necessidade suprema, a da preservação do poder, justifica a ocultação temporária de diferenças. Dizem-nos que o custo ponderável de qualquer acto de sedição provavelmente seria imensamente doloroso para o sedicioso. Todavia, o custo ainda imponderável da incoerência também pode ser elevado. Compromisso ou coerência, abertura ou hipocrisia, o que fazer? O tempo dirá, certamente.

Qual será o impacto das contorções discursivas diárias da nomenclatura geringonçista na insondável alma lusitana? A afirmação simultânea de diferenças e de convergências parece-se cada vez mais com uma tentativa deliberada de confundir as massas, apesar do pretendido ser exactamente o oposto. A geringonça serviu um propósito patriótico deveras importante: salvou o país do inferno da ingovernabilidade num período em que a ingovernabilidade teria  significado uma verdadeira tragédia Grega para todos nós. Hoje, todavia, é algo muito diferente: é uma máquina de produção de hipocrisia. É possível que a hipocrisia possa servir um propósito nobre, moralmente defensável, e que até possa ser justificada por projectos magnânimos de emancipação colectiva ou pelo mais prosaico “bem comum.” Mas, como dizem os americanos, “pode-se por bâton num porco mas ele será sempre um porco.”

Resta saber, entre outras coisas, se o consentimento tácito do PCP e do BE aos apoios concedidos à banca e as heréticas cedências ao patronato são, para os verdadeiros estalinistas e trotskistas, pecados que possam ser exonerados pela devolução comedida de rendimentos e pelo miserável aumento das pensões? Quanto custa a incoerência? Ninguém sabe. Consideremos uma outra sondagem, a que não antecipa uma maioria absoluta para o PS e a que coloca o BE e o PCP onde quase sempre estiveram, nas margens. Não acham estranho que um governo e uma coligação que criou um país digno da Alice não esteja a beneficiar de uma bonança política? Porque é que nenhum dos partidos da geringonça descola nas intenções de voto? Para muitos este parece ser um “enigma envolto em mistério.“ Sinto-me tentado a escrever: “é a incoerência, estúpido!” Temo que o efeito ainda imponderável mas inevitável dos malabarismos discursivos que nos entretêm diariamente seja um maior afastamento dos cidadãos da vida política. Aqueles que decidam afastar-se da política deverão ser compreendidos ou condenados por moralistas de ocasião? Será o povo populista? Não me parece.

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