Há uns dias atrás, a Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa convidou o Doutor Filipe Venade de Sousa, primeiro surdo a doutorar-se em Portugal, a participar numa conferência subordinada ao tema das pessoas com deficiência. Com efeito, estima-se que, na União Europeia, existam 80 milhões de pessoas com deficiência, sendo que “as mulheres, as crianças, os idosos e as pessoas com necessidades de apoio complexas ou deficiências invisíveis enfrentam dificuldades adicionais e múltiplas formas de discriminação”.

No contexto desta conferência, foi debatida a proteção jurídica das pessoas deficientes, não apenas no cenário nacional, mas também no plano internacional geral (Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência) e internacional regional (Carta Social Europeia), e no plano da União Europeia (Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).

Como explicou o Doutor Filipe Venade de Sousa, a surdez é um exemplo de deficiência silenciosa, porquanto o surdo não aparenta nenhuma deficiência física visível prima facie, mas carece de um intérprete de língua gestual para conseguir comunicar com as pessoas que não falam língua gestual.

A língua gestual não significa ausência de voz, silêncio ou vazio. Pelo contrário, a língua gestual é uma forma de comunicação. Por esta razão, a comunidade surda recusa ser apelidada de “surda-muda”, pois não se trata de uma incapacidade em falar (o aparelho fonatório, por norma, está preservado; o que acontece é que, como o surdo não ouve o som, não o consegue reproduzir). Esta precisão linguística de dissociar a surdez da mudez não significa enveredar por um discurso politicamente correto, mas outrossim respeitar a dignidade da expressão gestual, aliás reconhecida na Constituição Portuguesa (alínea h) do n.º 2 do artigo 74.º). Este é um pequeno ensinamento de como é necessário sensibilizar a sociedade dos nossos dias para a importância de aceitar a diversidade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Vivemos tempos algo cínicos, intolerantes à diferença e promotores de formas de “idolatria” de tendências uniformizadoras: o ideal de beleza, de felicidade, de modo de vida, de carreira a prosseguir surgem, amiúde, padronizados e unívocos. Qual será, então, o valor da diferença? Não será a diferença entre as pessoas um elemento enriquecedor do tecido social?

Em pleno século XXI, e após duras lições históricas de ditaduras de extremismos de esquerda e de direita, que perpetraram violações massivas e inaceitáveis da dignidade humana, não se podem admitir segmentações de cidadãos em cidadãos de “primeira classe” e cidadãos de “segunda classe”. A dignidade não é um conceito divisível e que permita escalonamentos ao jeito de capitis diminutio para algumas pessoas – as “outras”, as “diferentes”. A dignidade é endógena ao ser humano, nasce com ele, pelo que tem de ser protegida independentemente das manifestações e exteriorizações desse mesmo ser humano, tais como a raça, o sexo, a deficiência, ou a orientação sexual.

Afirmar a igualdade de todos perante a lei (igualdade formal) não é suficiente para corrigir a desigualdade das pessoas com deficiência, numa sociedade programada para pessoas sem deficiência. Um exemplo de índole pessoal: há cinco anos atrás, quando nasceu o meu filho, pude experienciar o que é empurrar um carrinho de bebé por ruas movimentadas e nem sempre adaptadas para este efeito, pude compreender (ao de leve) a dificuldade de locomoção que têm as pessoas com mobilidade reduzida. Na verdade, algumas ruas não tinham passeio suficientemente largo para os carrinhos, outras tinham inúmeros veículos (mal) estacionados no passeio dos peões e que impediam a circulação.

As medidas corretivas de desigualdade tratam a pessoa portadora de deficiência de uma forma diferente das demais pessoas (v.g., ao estipular-se a obrigação legal de lugares de estacionamento para deficientes). No entanto, o que se visa não é dar a essas pessoas mais direitos do que aos demais – colocando-as numa posição de superioridade – mas sim, nivelá-las às restantes pessoas que não têm deficiências motoras. Esta é, portanto, a igualdade material, em que a lei opera como instrumento ativo e promotor de igualdade. A expressão “tratar igual o que é igual, tratar diferente o que é diferente” consta de uma vasta jurisprudência constitucional e ordinária. Como afirmou Francisco Lucas Pires, em Uma Constituição para Portugal (1975), “a discriminação é injustiça, diferenciação é justiça”.

Em 2015, escrevi que “é imperioso, em homenagem ao pluralismo e à diversidade que são endógenos à nossa condição humana, que todas as pessoas, independentemente de possuírem ou não alguma limitação física ou psicológica, possam levar a cabo o seu projeto de vida, de forma digna e livre, e não vejam prejudicado ou limitado o seu livre desenvolvimento pessoal”.

A Constituição Portuguesa dedica o artigo 71.º à proteção das pessoas com deficiência, porém, não menciona a deficiência no elenco não taxativo de categorias “suspeitas” do n.º 2 do artigo 13.º (princípio da não discriminação): “ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”. Ora, para evitar interpretações restritivas do artigo 71.º, sugiro que, numa próxima revisão constitucional, o legislador adicione a deficiência às “categorias suspeitas” do n.º 2 do artigo 13.º, atribuindo assim um alcance geral à proibição de discriminação dos cidadãos portadores de deficiência.

Não obstante, a questão mais complexa é a seguinte: o que se espera do Estado relativamente à deficiência? Dada a natureza programática do n.º 2 do artigo 72.º, que carece de intermediação legislativa para concretizar os direitos aí estipulados – prevenção e tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência; sensibilização da sociedade – quais são as obrigações estaduais nesta matéria?

A minha convicção é a de que a lógica de “subsidiar” a deficiência não oferece uma resposta adequada, nomeadamente em relação às pessoas cuja deficiência não é totalmente incapacitante e que conseguiriam contribuir ativamente para a sociedade, sentindo-se verdadeiramente úteis e importantes para o todo da sociedade. O estigma do “coitadinho” é alimentado pela perceção unívoca e unidirecional do ser humano de que falava atrás. As pessoas portadoras de deficiência não se sentem necessariamente menorizadas pela sua deficiência, pretendendo aceitação social sem condescendência, reconhecimento do seu valor intrínseco e uma maior participação e representação na vida política.

É crucial o investimento do Estado nas valências da terapia da fala, da terapia ocupacional, da fisioterapia e da psicologia, para ajudar os portadores de deficiência e as suas famílias. Este trabalho com crianças, jovens, e adultos portadores de deficiência poderá melhorar significativamente a sua autoestima, o seu sentimento de pertença à comunidade – é uma inclusão alicerçada na igual dignidade da diferença,

Se, em termos de desenho das políticas públicas, pode ser mais tentador para o Estado atribuir simplesmente subsídios a estas pessoas, perguntamos onde está a promoção da sua autonomia. Será que políticas assistencialistas contribuem efetivamente para uma igualdade de dignidade? Ou dever-se-á, dentro dos limites da razoabilidade e da sustentabilidade do Estado, apostar em políticas públicas inclusivas – em especial, no acesso ao mercado de trabalho, mas também no acesso à cultura – que promovam uma genuína integração da pessoa deficiente na sociedade?

Em traços gerais, a legislação portuguesa da última década tem apresentado avanços significativos e, nas suas últimas conclusões relativamente a Portugal, o Comité Europeu dos Direitos Sociais não entendeu que Portugal estava em desconformidade quanto a esta matéria, apesar de ter apontado algumas reservas.
Por outro lado, a deficiência não deve ser automaticamente identificada com incapacidade jurídica (interdição ou inabilitação, reguladas no Código Civil). Daí os recentes esforços políticos e legislativos no sentido de assistir a pessoa deficiente no exercício da sua capacidade jurídica, ao invés de simplesmente a substituir. Neste domínio, é importante a ideia de solidariedade, promotora do bem-estar e da autodeterminação da pessoa com deficiência.

A título exemplificativo, uma vez que a Constituição estabelece o voto como “secreto” (n.º 1 do artigo 10.º), não parece respeitar a Constituição a impossibilidade que um invisual tem de votar em Braille e a necessidade de se fazer acompanhar de uma pessoa da sua confiança para conseguir votar. Neste sentido, foram apresentadas iniciativas que pretendem viabilizar a existência de boletins de voto com matriz em Braille.

Na difícil temática do princípio da igualdade, a maior complexidade está em promovê-lo sem cair nos extremos: (i) na teia do igualitarismo castrador de diferenças e da liberdade de autodeterminação pessoal; (ii) ou no fechar de olhos perante desigualdades reais, de facto, que persistem para além de proclamações eloquentes (constitucionais ou legislativas) de igualdade e de não discriminação. Como escreveu Eduardo Lourenço, em O Esplendor do Caos, “preciso do outro para existir e não posso existir plenamente se o outro é meu duplo. Um de nós está a mais”.

Professora de Direito Constitucional na Universidade Católica Portuguesa
Membro do Conselho de Coordenação da Academic Network on the European Social Charter and Social Rights (ANESC)