O início de cada ano costuma ser um período marcado por reflexões, mais ou menos efémeras. Tendo a “felicidade” sido objeto de amplos estudos teológicos, filosóficos, sociológicos, e, mais recentemente, económicos (economia da felicidade e economia comportamental) e psicológicos (psicologia empírica), poderíamos questionar se o Direito também deveria algo à felicidade. Nesta esteira, há quem defenda a importância de consagrar nas constituições um direito fundamental de nova geração: o “direito à felicidade”.

A meu ver, avançar num tal sentido pressupõe responder a três questões: o que é a felicidade? Poderá a felicidade constituir um genuíno direito ou será apenas uma mera perceção subjetiva? Deverá o Estado intrometer-se na felicidade? Tentarei abordar brevemente estes três dilemas.

1. A felicidade é, porventura, um dos conceitos mais difíceis de definir, pois abarca uma miríade infinita de aspirações e de emoções positivas. Para uns, a felicidade é a soma de experiências que potenciam um estado de intensa satisfação e adrenalina. Para outros, é um estado perseverante de tranquilidade e paz. Perguntar-se-á: porque não uma osmose entre esses dois estados de hedonia (prazer) e eudaimonia (bem-estar atinente à essência do ser humano)?

Na verdade, todos conseguimos identificar circunstâncias em que vivenciámos uma felicidade pulsante e quase transcendente: o indescritível milagre do nascimento de um filho, a paixão e a fantasia, as palavras “correu tudo bem” enquanto aguardávamos ansiosamente o desfecho de uma cirurgia de alguém que nos é querido, o orgulho de uma conquista pessoal ou profissional há muito projetada, ou até o simples facto de superarmos (pseudo)barreiras mentais ou físicas.

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Em sintonia, a felicidade pode ser também um estado de paz e de satisfação serena: escutar uma música etérea que nos transporta para uma realidade distante (escolheria a pura perfeição do adagietto da 5.ª sinfonia de Mahler), caminhar junto ao mar com aquela pessoa especial, os reencontros e as pazes, amar sem filtros, os momentos únicos passados com a família de sangue e com a família que escolhemos (os amigos-irmãos), viajar pelo mundo fora, ler um livro que nos eleva e faz sonhar, fazer voluntariado, vivenciar a natureza no seu estado mais puro, contemplar a beleza do ser humano, despertar um tímido sorriso em olhos que choram, escutar um idoso a contar as histórias do “seu tempo”, praticar desporto, sentir gratidão por alguém, etc. Cada um tem os seus momentos de felicidade. Cada um sabe o que o faz vibrar e o que o faz serenar em harmonia. Estamos, portanto, no domínio da subjetividade.

2. O direito à felicidade surge consagrado em alguns Estados, com mais ou menos parcimónia. Uns Estados optaram por o consagrar de forma abstrata e proclamatória, tais como a famosa “pursuit of happiness” expressa na Declaração de Direitos da Virgínia (1776), a referência no Preâmbulo da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), o artigo 10.º da Constituição da Coreia do Sul, ou o artigo 13.º da Constituição do Japão. Por sua vez, o artigo 9.º da Carta Constitucional do Reino do Butão foi mais longe e incluiu o cumprimento do Índice Nacional de Felicidade Bruta (INFB), que é um indicador social cuja função é a de medir a qualidade de vida das pessoas.

Nos Estados Unidos da América, o conceito de “felicidade”, que consta também das constituições dos Estados federados da Virgínia, Massachusetts e Wisconsin, acaba por ser uma mera redundância do direito à autodeterminação pessoal. Com efeito, tem sido invocada pela jurisprudência do Tribunal Supremo, em especial no que respeita ao acesso ao emprego (caso Meyer v. Nebraska), ao casamento interracial (caso Loving v. Virginia) ou ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (caso Obergefell v. Hodges). Noutros Estados, como no Japão ou no Brasil, a “felicidade” é uma variação retórica do princípio da dignidade da pessoa humana.

A felicidade está na moda e foi até instrumentalizada para fins de marketing político. Veja-se, a propósito, que uma das primeiras medidas de Nicolás Maduro foi implementar um “Vice-Ministério da Suprema Felicidade do Povo Venezuelano”.

No Brasil, a Proposta de Emenda à Constituição nº 19/2010 sugeriu a inclusão da “busca da felicidade” entre os direitos sociais do brasileiro. Assim, o artigo 6.º da Constituição federal brasileira passaria a ter a seguinte redação: “são direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Como elucidou o Senador Cristovam Buarque, o objetivo desta alteração era o de “humanizar a Constituição brasileira para tocar o coração com a palavra felicidade”. Esta proposta foi arquivada em 2014.

Seja como for, quanto a mim, o que aqui se pretendia não era propriamente introduzir um direito fundamental subjetivo à felicidade, mas sim associar a felicidade à garantia dos direitos sociais. Ora, como se pode compreender, acrescentar a expressão “essenciais à busca da felicidade” não modifica o estatuto jurídico dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais. Pelo contrário, apenas clarifica o texto constitucional ou, se não quisermos ser tão otimistas, ornamenta-o. No limite, poderá ter até um efeito pernicioso, que é o de fomentar o ativismo judicial, tendo em conta a dificuldade de densificação do conceito de “felicidade”, que poderia alicerçar pretensões judiciais infinitas de procura de felicidade.

Em reforço desta ideia, a distinção que necessita de ser feita é entre felicidade e bem-estar. Não tenho dúvidas que a felicidade de cada um dependa, em larga medida, da fruição de direitos sociais (de todos). Quer estes direitos sociais resultem consagrados nas constituições, quer na legislação infraconstitucional, possuem uma ligação umbilical com a dignidade da pessoa humana: são direitos essenciais para o nosso bem-estar e livre desenvolvimento da personalidade.

Os direitos sociais são pressuposto da felicidade – ninguém é feliz se passar fome, viver em pobreza, ou não tiver acesso à saúde – no entanto, não são condição necessária e suficiente da felicidade. Quantas pessoas têm um acesso generoso aos bens materiais e são infelizes? Ou aparentam ser felizes, pois consideram que é isso que os outros esperam delas?

Por tais razões, se o dinheiro compra bem-estar, não compra a felicidade. Até um certo ponto, podemos dizer que a felicidade é tendencialmente gratuita. Por outras palavras, a felicidade depende de fatores exógenos à pessoa (o seu ambiente sócio-económico, a sua capacidade financeira, o local onde habita), mas também de fatores endógenos ao ser humano (as suas emoções, a sua sensibilidade).

3. Resta saber se a felicidade cabe na Constituição. Estará o Estado obrigado a adotar políticas públicas de prossecução da felicidade?

De forma clarividente, o brilhante jurista Rogério Ehrhardt Soares já prognosticara, há cerca de 30 anos atrás, que “em cada viragem política da vida dos povos, as atenções se voltam ansiosas para a ideia mágica da constituição, como se dela dependesse exclusivamente a solução de todos os problemas. E facilmente se cria uma psicose coletiva constitucional (…) pedindo ou impondo à sua constituição cometimentos que ultrapassam as forças dela”. Daí a capital importância da autognose e da maturidade constitucional, porquanto “do modo como o texto constitucional conheça os seus limites, assim se salvará ou se danará”. Uma constituição demasiado pretensiosa poderá transformar-se numa constituição adormecida, repleta de utopia, poesia e erudição, mas sem aplicabilidade prática.

A terminar, reitero a importância de diferenciar a “felicidade” do “bem-estar”. Se a felicidade é um conceito emocional subjetivo dificilmente mensurável, que depende das perceções e idiossincrasias de cada um, já o bem-estar – o “buen vivir” de que se referem as constituições da Bolívia e do Equador, ou o “bem-estar” duas vezes citado na Constituição Portuguesa – é uma realidade que pode ser alcançada através de eficientes políticas públicas.

Não estaremos, então, no domínio pantanoso de uma felicidade utilitarista ou hedonista à la carte, mas no plano de medidas objetivas que promovam o bem-estar de todos, tais como a segurança e os direitos sociais (saúde, educação, cultura, entre outros). Se o Estado não consegue realisticamente garantir a felicidade das pessoas, deverá outrossim acautelar que existam as condições de bem-estar necessárias para as pessoas serem felizes – cada uma à sua maneira.

Na impossibilidade de viver em permanente êxtase, ao jeito de festim dionisíaco perpétuo, é usual que a vida tenha momentos de felicidade (hedonia e eudaimonia), de tristeza (perda, luto, desilusão), e de equilíbrio. Qual o lugar da felicidade? Não me parece que deva ser na Constituição, nem na lei. O lugar da felicidade é dentro de nós próprios, na vivência em sociedade e em solidariedade. Como proclamou W. Churchill, em 1941, no seu discurso perante a Câmara dos Comuns: “we are still masters of our fate. We still are captain of our souls”.

Vistas bem as coisas, se a felicidade fosse imposta por decreto, será que teríamos o fabuloso Livro do Desassossego de Fernando Pessoa? Fica a reflexão, com um breve excerto provocatório do mesmo livro: “irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira”.

Professora de Direito Constitucional na Universidade Católica Portuguesa