Enquanto a Europa corre para se preparar para uma potencial reeleição de Donald Trump, escolho relembrar o adágio popular da Lei de Murphy — “tudo o que pode correr mal, vai correr mal, no pior momento”. A meros dias da eleição presidencial norte-americana, resta-nos a nós, europeus, refletir sobre como pudemos chegar a este ponto — sem voz nem mão no nosso destino, e com tudo o que pode correr mal, prestes a correr mal, no pior momento.
Durante quase três décadas a Europa pôde disfrutar dos espólios da Guerra Fria no que chamamos o “dividendo de paz”. Com a União Soviética derrotada e a sua mundividência exausta, os exércitos europeus saíram dizimados da vitória. Esta redução drástica em investimento e a respetiva atitude de desinteresse face às ameaças externas à “ilha de paz” europeia veio a provar-se catastrófica nos últimos anos — enquanto a Europa tomou a sua vitória por definitiva, os seus adversários adaptaram-se ao novo mundo depois de uma primeira década de confusão e introspeção, nunca dando a história por findada.
A comparação de Robert Kagan — conhecido académico de relações internacionais norte-americano — entre a atitude europeia e americana face à ordem mundial que surgiu após o fim da Guerra Fria é emblemática deste fenómeno: “os americanos são de Marte e os europeus são de Vénus”. A Europa navegou as últimas décadas sob uma série de pressupostos que, a verificarem-se, a levariam à realização da imposição definitiva de uma “paz perpétua” Kantiana no velho continente — uma realidade bruscamente posta em causa várias vezes pela Rússia ao longo deste período. Ora, por mais que partilhe dessa aspiração, não posso deixar de notar uma atitude consistente das lideranças europeias neste período: quando confrontadas com um desafio externo, deixam Washington tomar o leme por defeito, pouco sacrificando em troca da benevolência dos seus companheiros transatlânticos.
A título de exemplo, os dois casos mais exasperantes deste fenómeno são precisamente a guerra russo-ucraniana e a possível reeleição de Donald Trump. Vejamos, tanto um como o outro têm duas semelhanças fundamentais para perceber a atitude da Europa face ao mundo: são ambos acontecimentos que a Europa não pôde impedir, mas para os quais das suas consequências se pôde precaver, escolhendo deliberadamente não o fazer até ao último instante. A isto chamamos uma estratégia reativa, não proativa, e é esta a mazela da qual nós europeus sofremos. Em oito anos, a Europa pouco ou nada se preparou — ao nível da sociedade civil, da sua economia, do seu investimento em defesa — para uma escalada da guerra russo-ucraniana, tal como em quase quatro anos de Joe Biden a Europa escolheu fingir que Trump ser reeleito seria uma impossibilidade, aceitando cegamente que “a América voltou”.
De facto, pouco importa quem ganha esta terça-feira. A Europa sairá derrotada moralmente desta noite eleitoral em qualquer caso, por descuro de preparação. Caso Trump ganhe, não surpreenderá dizer que o velho continente não está preparado para as consequências (bastante reais e penosas) que o septuagenário norte-americano tem reservadas para si. Mas, caso o oposto se verifique e os nossos melhores desejos se tornem realidade, poderá a Europa ficar descansada por mais quatro anos? A resposta é um categórico “não”. Kamala Harris não oferece à Europa democrática nada de particularmente extraordinário, salvo o mero facto de não ser Donald Trump. Harris não vai, ao contrário de Trump, demonstrar-se cética da NATO, nem muito menos estará disposta a deixar a Ucrânia ao abandono. Mas não nos enganemos: quer ganhe uma ou o outro, os Estados Unidos têm maiores preocupações que os assuntos europeus (relembro que já Barrack Obama falava de um pivot para a Ásia, tendo em vista os desafios da rápida ascendência da China enquanto potência internacional). Como tal, os Estados Unidos vão inevitavelmente exigir — e será na forma como o farão que os dois candidatos brutalmente se distinguirão — um maior esforço por parte dos seus parceiros europeus na manutenção dos seus próprios interesses.
No fundo, esta eleição, para nós europeus, não é sobre qual será o melhor candidato para a Europa. É evidente que se a Europa, enquanto entidade política, tivesse um voto, Kamala Harris seria a sua escolha para presidir os Estados Unidos pelos próximos quatro anos. Mas enquanto a Europa não tem voto na matéria da eleição norte-americana, tem um voto no seu próprio futuro. Pode ser tarde demais para nos prepararmos para o possível impacto de uma nova presidência Trump, mas não é demasiado tarde para a Europa começar a entender o seu lugar no mundo e como pode persistir.
O Zeitenwende de Olaf Sholz (cujos arautos pregaram como um acordar da Alemanha e da Europa para os desafios que a rodeiam) tem sido um fracasso mal disfarçado, enquanto Emmanuel Macron vê as suas ambições maximalistas para o projeto europeu estagnadas por uma crise de credibilidade, tanto na Europa como no seu próprio país. Mas se olharmos para leste, a sobriedade com que o futuro da União Europeia é tratado cresce exponencialmente. Aí — na Polónia, nos Bálticos, e pelo resto da Europa Central — a Lei de Murphy está bem presente nas mentes das suas lideranças. As suas sociedades civis conhecem bem as consequências de uma vitória russa na Ucrânia (os trinta anos de paz após o fim da Guerra Fria foram, afinal, os primeiros anos em que muitos destes foram verdadeiramente independentes em quase um século), e, não obstante o resultado das eleições americanas, preparam-se para o pior, esperando o melhor.
A Europa — e em particular a Europa Ocidental — deve, portanto, ter a ambição de se libertar da sua vagarosa inclinação para a inação e tomar o leme do seu próprio destino. Quer ganhe Trump e a sua coorte, que poderão desligar a América da segurança europeia, quer Harris com a sua posição mais tradicional dentro da política externa norte-americana, o facto é que a Europa não se pode dar ao luxo (depois de três ciclos eleitorais que confirmam que o fenómeno populista de Trump veio para ficar numa das metades do sistema político americano) de continuar dependente do auxílio americano quando os males lhe batem à porta. No final de contas, a lei de Murphy só realmente se aplica se nos resignar-nos a ela — foi o que fizemos durante três décadas, e sofremos as consequências. Cabe-nos a nós, europeus, o desafio de mudar a direção da nossa própria política e não navegar consoante as correntes inconstantes de Washington.