A noite passada, às 04h40 da manhã, os Estados Unidos lançaram 59 mísseis contra a base militar de al-Shayrat, na Síria. O motivo foi retaliar contra o ataque químico lançado pelo regime de Bashar al-Assad, na passada terça feira, na povoação rebelde de Khan Cheikhoun, a norte do país.

Até agora, e ainda a quente, há pelos menos quatro conclusões a tirar.

Em primeiro lugar, esta intervenção norte-americana deve ser vista como um ataque punitivo. Não foi por acaso que os bombardeamentos aconteceram depois de o Ministério da Saúde turco ter confirmado que as vítimas foram atingidas por agentes químicos. Em 2013, Barack Obama tinha afirmado que havia uma linha vermelha que não podia ser ultrapassada sem que os Estados Unidos interviessem: ataques químicos às populações. A linha foi ultrapassada uma vez, nesse mesmo ano, mas Vladimir Putin conseguiu impedir movimentações militares (que Obama não tinha grande vontade política de fazer) ao assinar um acordo que comprometia Moscovo a monitorizar o desarmamento químico do regime de Damasco.

Esta semana o acordo foi violado – e, já ontem, a embaixadora americana nas Nações Unidas responsabilizava o Kremlin por este fracasso. A administração Trump terá entendido que cruzar a linha vermelha duas vezes comprometia a segurança internacional. Alguns comentadores já começam a identificar o ataque com a agenda liberal dos direitos humanos, mas é uma interpretação exagerada. A punição é uma figura do direito internacional público tradicional, reservada aos estados que violam as regras dos tratados assinados de livre vontade. Além disso, estão em jogo outros temas mais relevantes para Trump – entre eles, a credibilidade e o prestígio internacional dos Estados Unidos.

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Em segundo lugar, apesar das declarações do presidente norte-americano no início da semana de que não queria envolver Washington nos acontecimentos da Síria, torna-se claro, pelas declarações que foram surgindo de dirigentes americanos de topo e pelas notícias que vão chegando, que o bombardeamento foi cuidadosamente planeado (possivelmente pelos mais importantes membros do gabinete de Donald Trump – o secretário de Estado, Rex Tillerson, o secretário da Defesa, James Mattis, e o conselheiro para a Segurança Nacional, H. R. McMaster). Além disso, os mísseis foram disparados contra um alvo simbólico – a base aérea de onde partiram os aviões com armas químicos na terça-feira. A Turquia, a Rússia e a NATO foram avisadas antecipadamente, como cortesia diplomática. Parece ter havido a intenção de evitar baixas humanas. Finalmente, o presidente fez um curto discurso à nação, dizendo ser um interesse vital americano travar o uso de armas químicas banidas pelos acordos internacionais. E que já se tinham ultrapassado muitas linhas vermelhas.

Em terceiro lugar, a Rússia reagiu lentamente, mas em crescendo. Primeiro emitiu um comunicado em que declarava que a Síria não possuía armas químicas. Umas horas depois já era o Kremlin a afirmar que não passava de uma Trumped-up (qualquer coisa como “uma invenção de Trump”, o que está a ser interpretado nos Estados Unidos como um insulto) e que o risco de um confronto entre russos e americanos tinha aumentado exponencialmente. Prevê-se que o encontro entre Putin e Tillerson, agendado para a próxima semana, venha a ser muito tenso. Afinal, o secretário de Estado norte-americano já tinha acusado o presidente russo ou de “incompetência” em cumprir o acordo de 2013 ou de “cumplicidade” com o regime de Assad. Seja qual for o ângulo pelo qual escolhermos ver esta questão, não deixa de ser uma demostração de força de Washington numa zona que Moscovo considera ser da sua esfera de influência. Desta forma, independentemente do resultado das negociações, a ideia de uma relação privilegiada Washington-Moscovo, tão apreciada por Donald Trump, caiu em desgraça.

Finalmente, em quarto lugar, a própria Síria. Assad enganou-se nos seus cálculos e agora está dependente do desenvolvimento dos acontecimentos, bem como da forma como os Estados Unidos e a Rússia se irão entender daqui para a frente. Não deixa de ser irónico que este ataque tenha transformado Assad de um ator principal na sua guerra civil num peão no xadrez do seu próprio país.

O que falta saber também é muito importante. Há dois elementos em jogo nos Estados Unidos. Um é perceber se este acontecimento constitui uma viragem na recente política externa. Terá o trio Tillerson-Mattis-McMaster tomado conta dos destinos da chancelaria americana contrariando algumas tendências expressas por Donald Trump? Já havia indícios disso – e este pode ser o primeiro passo. Em segundo lugar, apesar do caracter punitivo deste bombardeamento, é difícil prever se se trata de um ato isolado, ou se terá continuidade. Muito dependerá das pressões internas das elites americanas. Do lado Russo, é muito importante saber qual será a reação efetiva de Vladimir Putin. Moscovo pode não ser uma grande potência, mas costuma reagir com dureza a estas investidas, uma dureza muitas vezes superior às suas reais capacidades.

Assad ultrapassou a linha vermelha pela segunda vez, e agora a administração americana entendeu que a resposta adequada era intervir. De qualquer destas perspetivas, não há dúvidas que o rumo da guerra civil da Síria mudou. O que não sabemos ainda, é em que direção.

Investigadora do IPRI