1 Mais vale manter a liturgia se queremos que a verdade perdure; será? Liturgia quer dizer, num contexto cristão, “forma de adoração comunitária”.

Marshall McLuhan, o filósofo e teórico da comunicação canadense, proferiu uma máxima que acabou por se tornar famosa e que dizia: “ o meio é a mensagem”, ou seja, a forma específica com que se envia determinada informação é uma mensagem em si mesmo, pois acaba por condicionar, moldar, adaptar as nossas capacidades para receber a referida mensagem. De certa maneira, a Liturgia assemelha-se, neste sentido, a um meio de comunicação e, assim sendo, não é só o seu conteúdo que é importante, é também o modo como o mesmo é transmitido (“o meio é a mensagem”).

Imaginemo-nos numa celebração da eucaristia de uma qualquer igreja suburbana e numa outra na Sé, na catedral, ou na antiga igreja da aldeia. Claro que teologicamente são iguais, claro que as leituras são as mesmas, claro que Jesus Cristo está, igualmente presente na hóstia santa… mas para nós crentes que participamos custa-nos mais, seguramente, reconhecer a sacralidade, o sobrenatural, o transcendente na eucaristia celebrada na igreja suburbana do que na eucaristia celebrada catedral. E isso faz toda a diferença! “A pedra angular das liturgias cristãs é Jesus Cristo, aquele em quem coincide o meio e a mensagem do Evangelho”.

2 Frequentemente, nas nossas eucaristias dominicais, estamos mais centrados nas nossas atividades e em nós mesmos, e menos em Deus e na sua obra salvadora para nós. A “busca pelo sagrado” é, predominantemente, orientada para o que acontece dentro de nós, na nossa própria experiência pessoal, e não tanto no que Deus vai fazendo por nós, na História. Valorizamos, sobretudo, aquilo que queremos “dizer a Deus” (missas essencialmente “expressivas”) em detrimento daquilo que deveria ser prioritário, ou seja, daquilo que Deus tem para nos dizer (carácter mais “formativo”). Pois é precisamente isto que a torna algo da ordem do divino, do sobrenatural; isto é que desperta nos crentes o sentido de Comunhão Universal, o sentido de pertença a um Povo, ao Povo de Deus.  E é esta dimensão do Transcendente, esta elevação espiritual, esta riqueza e densidade da adoração… que se tem vindo a perder nas celebrações contemporâneas, nalguns casos de forma grosseira. Inúmeros teólogos têm vindo a apontar esta degradação da experiência litúrgica como o principal factor responsável pelo colapso da Igreja moderna.

As celebrações mais tradicionais, mais rituais e doutrinais não devem, então, ser consideradas como meras expressões de pompa sensorial, de incensos e badaladas…

3 Entramos numa igreja antiga, numa catedral, na Sé e percebemos o que é estar num lugar sagrado: as velas simbolizam a luz de Cristo; as imagens, a comunhão dos santos; o incenso, o Espírito Santo; os vitrais, como um grande símbolo da vida interior. Curiosamente, só conseguimos perceber os vitrais estando do “lado de dentro”, e observando a luz a passar; habituemo-nos, então, a ver por dentro! E por isso, as igrejas estão cheias de velas, estão cheias de ícones, de imagens, de vitrais; por isso, não podemos deixar de entrar, de olhar para cima, e ver por dentro; para poder, então, voltar a sair. Entramos numa igreja antiga, numa catedral, na Sé e percebemos o testemunho e o espírito daqueles que nos precederam, daqueles que nos sustentam, daqueles que nos fazem ter mais força do que aquela que verdadeiramente temos, daqueles que nos fazem ter mais alegria, mais entusiasmo, mais fé do que aquela que verdadeiramente temos! Infelizmente, a nossa cultura contemporânea fez desaparecer o mistério. E nós bem sabemos que ele existe, mas deixámos de ter nome para lhe dar. E por isso, precisamos tanto de entrar na igreja e demorar!

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

4 A dessacralização do quotidiano é, na verdade, uma realidade imparável! A dessacralização do quotidiano significa que a mística, o motor da nossa vida cristã, vai perdendo valor, tende a desaparecer; significa que tudo tende a ser igual, equivalente, semelhante. Fomos invadidos pelo veneno do Mundanismo, do Relativismo, do Secularismo (viver como se Deus não existisse) e temos agora uma visão muito estreita, muito materialista da realidade. Estamos a perder a consciência da nossa originalidade e identidade transcendente e sobrenatural da fé cristã. Fé cristã que supera, que está acima da realidade, dando-lhe pleno sentido. Esta é a Verdade!  A desvalorização do sagrado parece imparável, e por isso dramática! O Homem é, estruturalmente, um ser aberto à transcendência; retirar o transcendente da vida humana é amputar o Homem de uma das suas dimensões mais profundas. É evidente que o Sagrado está na raiz da experiência Humana! É isso que o torna especificamente humano.  A dimensão religiosa é uma componente estrutural de todo o ser humano; e isto quer dizer que ele é aberto à transcendência. Abertura à transcendência quer dizer, por sua vez, que o Homem tem anseios de qualquer coisa muito profunda que o ultrapassa, que vai para além dele. Abertura à transcendência é uma característica de qualquer pessoa normal, psíquica e espiritualmente saudável. Não será mais do que a necessidade de realização e plenitude que caracteriza qualquer ser humano equilibrado. Abertura à transcendência é, assim, um dado antropológico fundamental!

5 Não preciso dos ritos! Basta-me a minha consciência e as minhas escolhas pessoais; basta-me a minha intimidade, a minha interioridade; basta-me o que sinto e o que penso! Não preciso de ritos! A minha religião é diferente, é pura e transparente; é cá uma coisa minha, secreta; é algo meu, privado, interior! No Cristianismo, contudo, sabemos que os ritos não são meras coisas exteriores, ou simples normas e convenções sociais. Os ritos dão-nos um legado e colocam-nos na relação com os outros; colocam-nos numa história, numa igreja, numa comunidade, numa fé. Os ritos dão-nos, assim, o senso de pertença e uma identidade: – nós somos os católicos! O problema dos ritos é, então, o risco de superficialidade e o risco de se cair numa mera encenação! E porquê? Porque quem só tem uma vida ritual, será sempre uma pessoa superficial, frívola, básica; quem só tem uma vida ritual, facilmente se torna preconceituoso, moralista, manipulável. Por outro lado, Ritos e Vida Interior, estão muito ligados; os ritos são o sal da nossa vida interior. Sim, precisamos de ter vida interior; sim, precisamos de ter vida espiritual; sim, precisamos dos Ritos!

6 Gosto da igreja dos bancos de trás; gosto do recato da luz, e as sombras; gosto das vidas generosas. Perante o falatório e o rodopio das ruas, prefiro a festa do silêncio. Não gosto das luzes em fileira, das rampas e do palco; não gosto da ribalta, externa e fugidia. Mas gosto da penumbra suavizada, e despojada; a vertigem do meio da rua tira-nos claridade e lucidez. As batidas na torre sineira anunciam-se à hora certa, entro! Ainda assim, vejo gente reconciliada que quer muito; gente que volta, continuamente; gente que colecciona coisas misteriosas do mundo; coisas como as poesias e a música; como a beleza e o branco clareado das coisas. Coisas, como o tom amanhecido das casas, e a eternidade.  Há uma serenidade encontrada, pairada; é uma delicadeza e uma doçura, o que nos invade. Gosto do silêncio inspirador dos bancos de trás. Nos bancos de trás percebemos que o transcendente é avassalador. E não se trata de ficção, ou fantasia; o que nos transcende é mais real do que a realidade à nossa volta. Não é o mundo que tem de mudar… somos nós!