Entendamo-nos; a luta de classes já deu o que tinha a dar e ninguém acredita nela tal como a conhecemos.

Ainda a conhecemos, pelo menos os da minha geração, assim: o todo social estava dividido em duas classes irreconciliáveis definidas pela posição de cada uma delas na produção e a partir daí portadoras de mundividências opostas em constante confronto; o proletariado, conduzido pelo partido, minava a propriedade privada; e, a pouco e pouco, a ideologia burguesa lá ia desaparecendo, com a indispensável violência (criminosa) pelo meio, mas tudo com boas intenções.

Esta visão das coisas é hoje para débeis mentais. A complexidade, descentralização e diversificação das sociedades pós-modernas em que vivemos, fragmentárias e pós-tradicionais, não se concilia com tanto simplismo e tanta incompreensão da realidade.

Os últimos marxistas lusos já se aperceberam disto, mas como não podem renegar os esquematismos fáceis de que se alimentaram toda a vida – e que fazem parte não apenas da respectiva formação mental, mas até da sua própria identidade física, a ponto de serem reconhecíveis na rua e até no meio da turba -, têm procurado dar novo alento às suas deslocadas convicções. Não são todos; apenas os mais capazes.

Vai daí substituem a tradicional luta de classes por um conflito alargado agora ao todo social e designadamente à cultura dominante que o exprime. A luta já não é entre a burguesia e o proletariado; é entre a sociedade no seu todo que urge «libertar» e o modo de vida alegadamente falso e mentiroso que a cultura dominante lhe impôs. Nesta veem agora a expressão de uma «hegemonia», a que A. Negri, à falta de melhor, chama «império», que cauciona e reproduz o poder cultural da burguesia dominante e aprofunda e perpetua as abomináveis «desigualdades».

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Como já não há «base social de apoio» às pretensões de um partido de quadros a quem cabe representar as massas e conduzi-las à vitória, os novos «revolucionários» invocam outros pretextos e recrutam agora noutros meios. A luta é dita «cultural» e são outros os argumentos.

Começa-se assim: nada do que conhecemos e admitimos é «natural» e racional, mas sim insidiosamente artificial porque construído pela mão insidiosa da cultura «dominante» que colonizou cavilosamente o «mundo da vida» (na expressão husserliana). Há que «desconstruir» (leia-se destruir) tudo. Os reforços já não são consequentemente procurados juntos dos operários das desaparecidas cinturas industriais, mas sim entre a pequena burguesia urbano-depressiva logo começando pelos estudantes, pelos jornalistas mal-pagos e sabujos, logo arvorados a «comentadores», pelas minorias sexuais e sem esquecer as mulheres exploradas, as vítimas de toda a espécie, os imigrantes, os marginalizados, os subsídio-dependentes e tutti quanti. Eis os novos recrutas.

Esta confusa realidade preconizada pela esquerda mais «radical» é o wokismo. Considera que a realidade burguesa a despertou para  a necessidade de «desconstruir» as certezas em que vivemos e atacar sem tréguas o «poder» que considera disseminado a todos os níveis da ordem social, desde o Estado à família, desde a escola às relações conjugais (e creio que até às sexuais), desde a cultura ao artesanato, desde a arte ao desporto e ao trânsito rodoviário, eu sei lá… Tudo isto vitimiza e explora os novos «proletários», logo alimentados por discursatas mitómanas e intrujonas, ao que dizem muito radicadas «a sul», agentes pretensamente autênticos daquela «desconstrução».

O poder confunde-se com os poderes. A luta é, portanto, contra tudo o que cheire a ordem. Ao wokismo não importa o que se diz mas apenas quem o diz porque já está marcado pelo pecado original da sua proveniência e do discurso hegemónico.

O wokismo nada tem de científico ou de racional; é pura militância e ainda por cima desnorteada e tonta, sem teoria coerente e estratégia clara. Resume-se à tática no terreno. Vive do improviso e do espectáculo mediático.

Se o velho Marx fosse vivo, logo definiria o wokismo como a ideologia do lumpemproletariado ou seja, dos energúmenos sem consciência de classe porque alheios à produção, sem as mãos sujas da ferrugem e sem curiosidade dominical pelas cartilhas da I Internacional.

De maneira que, com tais recrutas e semelhante tática, os esquerdistas já não são revolucionários. São anti-conservadores que é coisa bem diferente. Já não podem querer e, no fundo, nem querem as nacionalizações, a vedação dos principais sectores à iniciativa privada, a reforma agrária, os saneamentos dos «sabotadores» e dos «reacionários», a famigerada autogestão, a unicidade sindical e a entrega das empresas às comissões de trabalhadores e se, algum deles, volta e meia, ainda fala nisso, é por tique ou por saudade em almoços comemorativos. Contentam-se agora com bem menos. Sabem bem que não têm classe social que se identifique com eles e com aqueles propósitos e que deles dependa vitalmente. E os mais lúcidos suspeitam que o capital não sofre muito com revoluções «culturais» e que até as digere bem e logo reconverte em exigências de maior produtividade. Nas novas empresas do nosso país já só se fala, e bem, em «incluir» toda a gente; até aí a esquerda radical, como todos nós, acha bem. Mas não é que ao mesmo tempo exigem maior responsabilidade, que é como quem diz, mais trabalho e competência? Aqui já acha mal porque discriminatório e «elitista».

De modo que só posso desejar aos camaradas que sigam em frente mas, sem classe social definida que os secunde, sem partido hegemónico que os conduza e sem interesses claros e homogéneos, olhem que desta vez a vitória não é certa.