Michael J. Sandel, um ilustre professor da Universidade de Harvard, escreveu o livro “A tirania do mérito”, recentemente publicado em Portugal. Nessa obra, o autor analisa os efeitos potencialmente perversos sobre a sociedade que a lógica de um pensamento exclusivamente meritocrático poderá ter, os grandes eventos políticos internacionais que daí, alegadamente, resultaram e qual será o melhor caminho para melhorarmos ou, na pior das hipóteses, para evitar um “mal maior”.

De uma forma resumida, e focado, principalmente, na sociedade dos Estados Unidos da América (EUA), o autor adverte que a meritocracia, vista como valor supremo e exclusivo da organização das sociedades modernas, divide os indivíduos em “vencedores” e “perdedores”. Os primeiros, alegadamente pelo mérito, estudaram em boas universidades, obtiveram bons empregos, e ganharam bom dinheiro. Venceram. Os outros (a grande maioria), não o fez. Perderam. E na lógica meramente meritocrática, uns e outros foram exclusivamente responsáveis por esses distintos desfechos. Dito de outra forma, merecem-nos. E esse alegado merecimento é, para os primeiros, razão para uma desmedida arrogância e, para os segundos, fonte de humilhação.

Repare-se que a grande maioria dos americanos não tem ainda um curso superior e que a percentagem da população que aufere os rendimentos mais elevados é ainda, francamente baixa. Portanto, os “meritosos” são uma ínfima parte da população e os “humilhados” representam uma percentagem significativa da mesma. A resultados semelhantes teria o autor chegado, caso tivesse analisado a realidade portuguesa.

Tal atitude terá, segundo o autor, estado na génese de importantes movimentos de protesto, nomeadamente a eleição de Donald Trump para presidente dos EUA em 2017 e o “Brexit” no Reino Unido em 2016.  Ambas as votações saíram vitoriosas com o apoio maioritário de cidadãos sem um curso universitário.

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Se olharmos para o nosso pobre País, verificamos, com um certo alívio (inapropriado), que estamos longe de tais problemas, uma vez que a meritocracia está fora do nosso horizonte próximo. É certo. Mas os movimentos políticos de descontentamento já existem e ganham, progressivamente, mais adeptos. Crescem, meramente na base desse protesto, dessa mesma população que se sente “a ficar para trás”.

Sejamos claros: a meritocracia é importante e até fundamental numa sociedade. É sempre preferível (e mais justo!) contratar um colaborador melhor do que um pior. Portanto, Portugal terá, inevitavelmente, que adotar esse processo de seleção de indivíduos, ao invés do ainda costumeiro, nomeadamente na administração pública, sistema de favorecimentos político-partidários.

Mas não basta. Já lá iremos.

A parábola do filho pródigo (Evangelho São Lucas 15:11-32) conta a história de dois filhos e um pai. O filho mais novo pede a sua parte da herança, sai de casa e gasta-a toda “vivendo dissolutamente”. Regressa, miserável e arrependido. À chegada e antes mesmo de pedir desculpa, o pai abraça-o, beija-o e organiza uma festa em sua honra. O filho mais velho, que sempre ajudou e obedeceu ao pai, fica indignado. O pai responde-lhe “Filho, tu sempre estás comigo, e todas as minhas coisas são tuas. Mas era justo alegrarmo-nos e regozijarmo-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; tinha-se perdido e foi achado.”

No final do livro, Michael J. Sandel aponta-nos para um caminho alternativo (ou melhor, complementar) à meritocracia: associar à lógica da meritocracia a humildade de reconhecer que nem tudo o que somos ou conseguimos fazer se deve, exclusivamente, ao mérito (a genética que temos, a educação que tivemos desde que nascemos, o sabermos fazer coisas que são mais valorizadas num determinado tempo e espaço do que outras – veja-se dois campeões mundiais de desporto, por exemplo, o Cristiano Ronaldo, no futebol e o Fernando Pimenta, na canoagem, e as diferenças de rendimento entre ambos – etc.) e, nessa humildade, encontrar formas de valorizar não o resultado, em termos de mercado, do que cada um “vale”, mas sim o que cada um contribui para a sociedade e para o bem-comum.

A mesma mensagem é passada na referida parábola: o meritoso está sempre com o pai e “todas as minhas (do pai) coisas são tuas”. Mas é importante alegrarmo-nos e aceitarmos os outros, mesmo os menos meritosos. Até porque muitos “estavam mortos e reviveram”.

O caminho a percorrer, depois de devidamente estabelecido o princípio da meritocracia numa sociedade moderna, é, pois, o de assegurar que todos, absolutamente todos, sentem que são uteis para a sociedade e que dão o seu, mais ou menos valioso, contributo para o bem-comum.

Mais do que construir uma sociedade meritocrática, ou de continuar a aceitar a asfixiante atual sociedade distributiva, de inspiração socialista ou social-democrata, é fundamental construir uma sociedade contributiva, em que os valores supremos são a dignidade no trabalho e o respeito e valorização do contributo do trabalho de todos, independentemente se são varredores, entregadores de pizza, engenheiros ou médicos. Regressemos ao modelo que reconhece o individuo que trabalha, contribui, e se sente, por isso, valorizado, ao invés do modelo que estigmatiza o “perdedor”, que tem toda a miséria que merece.

Sem esse movimento evolutivo, capaz de conjugar uma sociedade que valorize o mérito mas também, e principalmente, que reconhece e dignifique o contributo de todos, corremos riscos de ruturas sociais sérias ou de movimentos de protesto de efeitos imprevisíveis.