O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, está em Portugal a convite do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa. Durante a estadia, será, ou já foi, recebido oficialmente em Belém, na Assembleia da República e na Câmara de Lisboa. Parece que haverá, ou houve, um jantar no Palácio da Cidadela dedicado, cito, à “honra” do indivíduo, com a participação do primeiro-ministro daqui.

O sr. Díaz-Canel não é uma pessoa honrada. É o chefe em funções de um regime sanguinário, que há sessenta e tal anos mata, prende e tortura os seus “cidadãos”, de facto cobaias de mais uma experiência de “socialismo real”. Para todos os efeitos, o sr. Díaz-Camel é um criminoso, que carrega sem arrependimento ou vergonha o lastro dos fuzilamentos, dos campos de “reeducação”, do sofrimento de dissidentes políticos, homossexuais e crentes religiosos. Os que escaparam aos extremos do horror, e não ascenderam às cúpulas do Partido Comunista ou fugiram para Miami, vivem no moderado horror da miséria, entre as ruínas dos edifícios espanhóis, mutações de Chevrolets, salários de 40 dólares, censura e lojas vazias. A rumba e o rum e o sol não compensam o resto.

Os promotores da visita do sr. Díaz-Canel também não se distinguem pela honradez. É verdade que o prof. Marcelo prestou vassalagem a Fidel logo no início do seu primeiro mandato. E que o actual PS integra as hordas de transtornados que estampam na t-shirt e no coração a carranca do “Che”, um renomado psicopata. E que, numa decisão cúmplice com a propaganda de Havana, o ministério da Saúde acaba de anunciar a importação de 300 “médicos” cubanos, de facto escravos sem experiência, conhecimentos ou utilidade. E que, em matéria de veneração protocolar de comunistas, Portugal inaugurou recentemente uma tradição que, suspeitava-se, não terminaria com o célebre Lula da Silva.

Ainda assim, caio na infantilidade de me espantar com o exercício. E de não conseguir imaginar que tipo de conversa os nossos insignes representantes possam manter com um espécime do calibre do sr. Díaz-Canel. Do que se fala à mesa com torcionários? Falarão do tempo ou, para usar o jargão em vigor, das alterações climáticas? Duvido que falem da guerra na Ucrânia, já que, conforme acontece com os “médicos”, Cuba tem vendido “soldados”, sinónimo de infelizes conscritos, para lutarem – e morrerem – ao lado das tropas russas. Como típicos portugueses, talvez falem de comida, assunto em que o sr. Díaz-Canel se revelou especialista quando, em 2020, explicou que a fome cubana se resolveria através do consumo intensivo de massa de pizza (a aquecer em micro-ondas) e limonada. Qual será a ementa do jantar em Cascais?

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A principal questão, porém, é: para que serve isto? Para nada, excepto a afirmação simbólica das escolhas tomadas pelos bandos que mandam em nós, e a que nós jovialmente obedecemos. Nos finais de 2015, a época histórica em que o dr. Costa derrubou o muro que separava a esquerda leninista do poder, escrevi diversas vezes (demasiadas, segundo alguns) sobre a inevitável caminhada do país rumo aos delírios do Caribe “revolucionário”, uma caminhada apenas limitada, ou disfarçada, pelas obrigações “europeias” e a mendicidade caseira. Hoje, boa parte dos cargos ditos de responsabilidade em Portugal estão ocupados por criaturas que, por fanatismo ideológico ou indiferença, não teriam escrúpulos em tratar-nos com a elevação com que o “fidelismo”, o “chavismo” ou os cultos tropicais afins tratam os respectivos súbditos. Aliás, já não falta muito.

O radical desprezo dos governantes pelo bem-estar da população é similar. Os apetites pelo controlo da informação não diferem na natureza. A tendência instantânea para a repressão e a asfixia económica e social é partilhável. O prazer na humilhação é comum. A diferença, ou aquilo que parcialmente nos impede de ser a vacina cubana que Kissinger há meio século prescreveu, é, além do verniz de civilidade imposto pelas esmolas alemãs, a adesão voluntária dos oprimidos à opressão. Em Cuba, o regime necessita de impor o “progressismo” pela força. Cá, o “progresso” tem avançado sob a legitimação, e ocasionalmente a aclamação, popular. É provável que os cubanos não aguentassem condições tão desumanas caso não tivessem uma arma apontada à cabeça. Por enquanto, os portugueses vêm empobrecendo e o único objecto que lhes apontam é, de longe a longe, o boletim de voto.

Não ignoro a distância que vai da calamidade cubana à crescente penúria lusitana. Ignoro o ponto a partir do qual a penúria se revelará insuportável a este povo dócil e subordinado. E, pior, ignoro se esse dia chegará. Até ver, não chegou: na vasta maioria, o povo teima em aceitar com mansidão as doses reforçadas de velhacaria que a oligarquia lhe despeja em cima sem que alguém se lembre de chamar ao arranjo uma ditadura. Se calhar, é disso que, no meio de fartas gargalhadas, os sobas portugueses e cubanos falaram à mesa. O sr. Díaz-Canel veio ensinar e veio aprender.