Foi recentemente apresentado pelas autoridades o Plano de Emergência e Transformação na Saúde, dando prioridade à eliminação das listas de espera para cirurgia em doentes com cancro, às urgências obstétricas, às urgências gerais, à saúde mental e à saúde próxima e familiar. A identificação de problemas, nalguns casos dramáticos, a vontade de os resolver, a apresentação de um plano e a calendarização de medidas merece aplauso. Alguns destes são temas centrais, duramente sentidos pela população e amplamente divulgados pelos media. No entanto, a escolha das prioridades, incluindo umas e não outras e a metodologia da abordagem, são decisões evidentemente políticas, embora fundada em pareceres técnicos.
Segundo os últimos dados disponíveis do INE, referentes a 2022, as designadas doenças do aparelho circulatório continuam a liderar as causas de morte em Portugal (26,6%), seguidas pelos tumores malignos (22,4%). Especificando um pouco mais, as doenças cerebrovasculares (que incluem o AVC) foram responsáveis em 2022 por 7,7% do total das mortes, seguidas da doença crónica das coronárias (5,5%) e do enfarte do miocárdio (3,2%).
É importante referir que, apesar da sua posição ainda cimeira, se verifica uma tendência para diminuição da percentagem de mortes por doenças cerebrovasculares na última década e que, nas “doenças isquémicas do coração” (doença crónica das coronárias), a tendência para descida estacionou e apresentou mesmo um crescimento de 3,1% em relação ao ano anterior.
A influência da pandemia de COVID 19 é difícil determinar, e na literatura científica há informações contraditórias, sugerindo mesmo pouco impacto directo na mortalidade cardio e cerebro-vascular. Recorde-se que durante a pandemia, houve aumento da mortalidade não COVID e que essa (há dados muito detalhados de países como o reino Unido) foi sobretudo cardiovascular (atraso na procura de cuidados urgentes, disfunção de acompanhamento de situações crónicas graves?).
A não inclusão das doenças do aparelho circulatório nas prioridades do Plano de Emergência criou alguma perplexidade tendo em conta as estatísticas e não foi certamente uma omissão (apesar do grupo de trabalho não incluir especialistas cardio ou cerebrovasculares, os seus elementos são certamente conhecedores do tema) podendo mesmo ter sido uma opção. Essa opção pode encontrar fundamento num conjunto de factores: a noção de que o que pode ser feito, já está feito e não se pode melhorar (neste aspecto o sucesso continuado da Via Verde coronária pode dar a ilusão de que tudo está conseguido), algum excesso de optimismo levando à leitura de que a melhoria nalguns indicadores significa que entrámos em velocidade de cruzeiro, a constatação de que a doença cardiovascular deixou de ter o impacto mediático de outras patologias e, embora continuem a ter enorme peso, não abre os mesmos telejornais (talvez compreensivelmente…) que as urgências obstétricas, por exemplo. Além disso, o cancro tem uma leitura emocional muito mais forte, a saúde cérebro e cardiovascular poderá ter uma pressão menos intensa que outras áreas por parte eventuais influenciadores de decisões e existem situações médicas sub-representadas nas estatísticas e que, não obstante, são muito relevantes (como, por exemplo, a Insuficiência Cardíaca).
A Insuficiência Cardíaca, é uma sindroma associada a uma mortalidade elevada, superior à do enfarte do miocárdio e de alguns dos cancros mais comuns (mama, intestino e ovário, nas mulheres e bexiga, próstata e intestino, nos homens). Trata-se duma situação frequentemente sub-diagnosticada (mesmo nos doentes que são acompanhados em Cuidados de Saúde Primários – estudo e-TREAT, 2023 – em metade o diagnóstico não foi feito e, todavia, vieram a ter internamentos por Insuficiência Cardíaca descompensada), pouco ou nada representada nas estatísticas de morbilidade e mortalidade. Muito provavelmente as “doenças do aparelho circulatório” das nossas estatísticas oficiais, que não se esgotam na soma algébrica da doença coronária crónica, do enfarte do miocárdio e do AVC, incluem também casos de Insuficiência Cardíaca.
E no entanto, ao contrário de outras situações clínicas, a Insuficiência Cardíaca está bem caracterizada em Portugal, através do grande estudo PORTHOS (da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, em parceria com a Nova Medical School e a Astra Zeneca), recentemente realizado e que mostrou uma surpreendentemente alta prevalência de 16,54% na população adulta com mais de 50 anos (1 em cada 6 portugueses!), com predomínio nos maiores de 70 anos (30% afectados neste grupo etário) nas mulheres (21 versus 10%) e com grande assimetria regional (maior prevalência no Alentejo). Noventa por centro das pessoas identificadas neste estudo não estavam diagnosticadas. A divulgação dos resultados deste estudo teve alguma visibilidade, mas não, não abriu noticiários.
A Insuficiência Cardíaca não se vê (pelo menos por olhos não profissionais), sente-se, vai moendo e vai matando. E a morte cardiovascular, para a qual muito contribui a Insuficiência Cardíaca, não tem lista de espera.
Penso que a Insuficiência Cardíaca pela sua prevalência, pelo grau de sofrimento e invalidez que acarreta e pela sua elevada mortalidade, justificaria, por si só, um plano de emergência nacional que lançasse finalmente as bases de um modelo de acompanhamento crónico e agudo desta situação, nos vários níveis e nos vários modelos do sistema de saúde e mantenho a esperança de que o conhecimento maior que agora temos da nossa realidade seja gerador de propostas que a tutela venha a acolher como promotoras da transformação em saúde.