É indisfarçável o ruído existente, resultado de disfunções a vários níveis do Serviço Nacional de Saúde. A pandemia revelou ou acentuou fragilidades, apesar de o sistema ter reagido com distinção em situações como o programa de vacinação anti-COVID 19.  É bom, todavia, que se abordem os temas com verdade e se diga que há coisas a funcionar bem ou mesmo muito bem. Uma delas é o sistema de tratamento do enfarte agudo do miocárdio, que envolve a Emergência Médica pela Via Verde Coronária, em articulação com as Unidades de Intervenção Coronária, nume rede que cobre o território nacional, e que o INEM a cardiologia portuguesa, com enorme esforço,  mantiveram o sistema a funcionar mesmo nas alturas mais críticas da pandemia. Apesar disso, o número de enfartes tratados diminuiu nessa fase e a mortalidade não COVID aumentou em Portugal e nos outros países, sendo as doenças cardiovasculares responsáveis pela maior fatura desse aumento. Da parésia dos sistemas de saúde há, evidentemente, sequelas: aparecem-nos agora formas mais graves das doenças, formas mais evoluídas em consequência de um acompanhamento defeituoso das situações crónicas mas uma vez mais a cardiologia portuguesa tenta reagir e tem no terreno estudos de grande dimensão, como o estudo PORTHOS (que irá atualizar a caracterização da Insuficiência cardíaca em Portugal) e têm sido estudados modelos funcionais que se têm apresentado à tutela, para que o futuro dos doentes seja mais risonho. Em todos estes anos, a cardiologia portuguesa não tem tido descanso e desmultiplica-se em muitas frentes de trabalho clínico, de investigação e de educação médica e das populações, visando a melhoria da saúde cardiovascular dos portugueses.

A pretexto dum pedido de colaboração feito à Sociedade Portuguesa de Cardiologia para participação num programa da “World Heart Federation” (“Federação Mundial do Coração”) – “Colors to Save Hearts” (“Cores para Salvar Corações”) que visa a irradicação da Febre Reumática (responsável por muitas doenças cardíacas nos países com menos rendimentos), foi firmado um protocolo com a Universidade Eduardo Mondlane, do Maputo, que se materializa no Programa “Coração com Moçambique”.  Este programa, desenhado em conjunto com os colegas moçambicanos de acordo com as necessidades por eles identificadas, vai ser um projeto contínuo, dilatado no tempo, que envolve componentes formativas de profissionais de saúde, não só para a melhoria da prestação de cuidados, mas também na educação das populações.

A primeira fase consiste no envio de uma missão de 11 voluntários cardiologistas portugueses, incluindo 3 cardiologistas pediatras, quase todos jovens e que durante duas semanas, com partida a 1 de Julho, irão fazer formação no terreno de profissionais de saúde de Moçambique, para ficarem habilitados a identificar cardiopatia na população, através de meios clínicos e ecocardiograma. Numa primeira ronda de contactos para identificar voluntários, disponibilizara-se de imediato quase o triplo dos selecionados.

A preparação da ação está já a decorrer, com um curso via Internet que tem mais de seis dezenas de participantes de Moçambique. O programa Coração com Moçambique tem o apoio de entidades como a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, o Institudo Camões, a Apifarma e conta com o Alto Patrocínio de Sua Excelência o Presidente da república. Aos grandes grupos privados de saúde e empresas de equipamentos médicos foi igualmente lançado o desafio de colaborarem neste projeto, dada a enorme escassez de meios técnicos locais.

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Num tempo conturbado, com sistemas esgotados e equipas exaustas, de crise de valores e de posturas, de ganância e atropelo, de relativização de princípios ainda há, afinal, um espaço solidário para com quem está ainda pior que nós, um espaço de fraternidade vivida e não apenas dita, uma espaço que é motivador das novas gerações de cardiologistas, fazendo-nos renascer a esperança de melhores dias, por nos mostrarem que há um coração maior.

Victor Machado Gil

Presidente-honorário da Sociedade Portuguesa de Cardiologia

(coordenador do Programa “Coração com Moçambique”)

19.05.2023