Repetidamente, as doenças cardio e cerebrovasculares aparecem nos lugares cimeiros da mortalidade e dos anos perdidos por incapacidade Portugal e no mundo. Os custos também económicos desta realidade são de grande monta e depois de uma melhoria progressiva ocorrida nas últimas décadas, a pandemia e suas sequelas teve uma voz autónoma também nestas patologias e não só nas complicações respiratórias diretas do vírus SARS-CoV-2. Sabe-se, por exemplo, da estranha diminuição do número de enfartes do miocárdio tratados por cardiologia de intervenção nas fases de confinamento, mas também do correspondente aumento das mortes não-COVID sobretudo por causa cardiovascular (receio de ativar o sistema de emergência atempadamente, com deterioração da situação clínica e evolução para formas mais graves?) de que resultou casos mais complexos a recorrerem aos serviços em fases mais tardias e agravadas. Mas também a disrupção do acompanhamento das situações crónicas levou a problemas graves, com interrupções de medicação, não identificação de sinais de agravamento e, em não poucos casos, sobretudo nas fases iniciais, de uma quase completa incapacidade de os doentes contactarem os serviços. As verdadeiras consequências de tudo isto ainda estão a ser apuradas, mas a pandemia apareceu não só como um parêntesis no que de bom estava a ser feito, mas como um adicional fator potenciador do risco.

Quando se fala de mortalidade e morbilidade cardiovascular, tem-se sobretudo presente o enfarte do miocárdio e o AVC e suas sequelas, mas outra situação não necessariamente diversa pois pode ocorrer como etapa mais avançada ou final do próprio enfarte do miocárdio e de outras patologias cardíacas, tem vido a emergir a ponto de que antes do aparecimento da infeção por COVID-19, já se falava de que estava a surgir uma nova pandemia, a da Insuficiência Cardíaca. A Insuficiência Cardíaca (IC) é uma síndroma menos identificada como tal, resultante da incapacidade do coração em cumprir as suas funções quer por diminuição do bombeamento (designada por IC com Fração de Ejeção – um parâmetro da contractilidade – diminuída) quer por compromisso em acomodar o sangue que lhe chega pelo sistema venoso (IC com Fração de Ejeção preservada). Ocorrem na IC alterações estruturais do coração, elevação de biomarcadores (análises de sangue) e sintomas como cansaço, falta de ar e sinais de congestão, com aparecimento de edemas (inchaços) nos membros inferiores, dilatação do fígado ou mesmo ascite (“barriga de água”). A IC tem uma mortalidade superior à dos quatro cancros mais comuns em mulheres e homens, é causa de grande incapacidade e sofrimento e a primeira responsável por internamentos não planeados.

Em 2002 foram publicados os resultados do Estudo EPICA (Fátima Ceia et al.) com dados clínicos recolhidos em 1998 mostrando uma prevalência de 4,46% de IC na população portuguesa. Ao longo das últimas duas décadas, muito mudou na sociedade e na saúde dos portugueses. Por um lado, o tratamento do enfarte em fase aguda melhorou, com a implementação da via verde coronária mas, por outro, o envelhecimento da população, a entrada no sistema de população migrante, problemas graves de acessibilidade e identificação clínica do problema a nível de cuidados primários (43% de “oportunidades perdidas” de diagnóstico no estudo e-TREAT, 2023), profunda assimetria territorial em termos de saúde, fariam supor que os números conhecidos estavam desatualizados e motivaram a realização de um estudo de grandes dimensões, com logística e envolvimento de meios  complexos, cujos primeiros resultados foram apresentados em sessão solene no passado dia 12 de dezembro. O estudo PORTHOS, da iniciativa da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, foi possível pela parceria estabelecida entre a Sociedade Científica, a Nova Medical School e a farmacêutica Astra-Zeneca e contou com o Alto Patrocínio de S. Exª o Presidente da República, que esteve presente na sessão de apresentação de resultados, na sala de atos da Nova Medical School. O estudo, lançado há quatro anos, atravessou a pandemia e conseguiu chegar ao fim dentro do planeado, envolvendo meios impressionantes, à nossa escala: um camião equipado com gabinetes de consulta, laboratório de análises clínicas e de ecocardiografia, percorreu todo o território continental, recolhendo dados de uma amostra representativa da população nacional com 50 ou mais anos calculada em estudo científico prévio. Foram avaliadas 6189 pessoas (mais de 15500 tentativas de contacto) por uma equipa que envolveu mais de seis dezenas de profissionais (médicos, técnicos, cientistas, administrativos) e mais de sete dezenas de profissionais das unidades locais.

A prevalência atual de Insuficiência Cardíaca em Portugal nas pessoas com 50 ou mais anos é de 16,54% um número impressionante onde predomina largamente a IC com Fração de Ejeção preservada, maior nas mulheres e nas idades mais avançadas e com enormes assimetrias regionais (Alentejo de longe a zona mais atingida). Muito significativo, o facto de nove em cada 10 doentes não terem conhecimento prévio do diagnóstico de IC.

Este estudo, que mostra que o coração dos portugueses está seriamente doente, merece uma reflexão profunda, evidentemente por parte dos profissionais de saúde, mas certamente do país no seu conjunto. Reflete uma realidade dura, na maior parte dos casos oculta, com grandes assimetrias regionais. Talvez a Insuficiência Cardíaca seja um vulcão não necessariamente adormecido, mas desconhecido ou ignorado. Quem dera seja um caso único mas temo, todavia, que os resultados do estudo PORTHOS reflitam no fundo as insuficiências de um sistema que urge melhorar – e muito – na acessibilidade do contacto mas também na capacidade de diagnóstico e de acompanhamento estruturado. Os resultados de muitas análises do estudo irão ser publicados de forma a melhor compreender a epidemiologia e com isto projetar melhores decisões clínicas, de organização de cuidados e políticas de saúde. Quem concebeu, projetou e implementou o estudo, fez a sua parte.

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