O resgate e o mau da fita
“O abismo da história tem profundidade suficiente para lá cabermos todos”, escreve, muito justamente, Paul Valéry, em 1919. Mas parece que há quem o cite para resgatar do abismo da história algumas necropolíticas e alguns necropolíticos que, apesar dos muitos milhões de mortos, enganados, torturados e silenciados que carregam às costas, seguem directamente para a silente bem-aventurança dos humanitariamente imaculados e dos ideologicamente intocáveis.
Ideias que levem à morte, a políticas de morte, só as dos nazis, as dos fascistas, as dos franquistas, as dos salazaristas, as dos colonialistas – e, agora, as dos racistas americanos, sendo a América, logo a seguir ao Terceiro Reich, e já desde os pais fundadores, o país onde mais persistentemente se pratica a necropolítica e onde se dão os maiores e mais abjectos atropelos aos direitos humanos. E como não podia deixar de ser, o representante “mais expressivo e mais bem-sucedido” desta necropolítica é hoje Donald Trump, o supremo “bobo da corte”. De uma corte que, não o podendo para já despedir, se dedica a desmenti-lo, a insultá-lo e a chamar-lhe palhaço, para ver se distrai o povo de algumas incómodas verdades e de alguns inconfessados vícios que, tradicionalmente, os bobos, por piores e mais extravagantes que sejam, sempre vão denunciando.
Com o aproximar da eleição norte-americana, o clima de histeria mediática anti-Trump tem vindo a crescer exponencialmente. Não me lembro mesmo de um político que tivesse sido objecto de uma campanha tão universal e tão radical de acosso e de ódio. Até por cá, parece não haver quem não reivindique o seu lugar ao sol no grande apedrejamento público do amoral, selvático e sub-humano presidente dos Estados Unidos – desde respeitáveis intelectuais e cronistas até meros pivots e figurantes.
Ao mesmo tempo, com admirável desprezo pelas regras mais elementares da objectividade jornalística, omitem-se quaisquer notícias que possam beliscar o seu concorrente, Joe Biden. Nos Estados Unidos, o Twitter e o Facebook censuraram partilhas e impediram a circulação de tais notícias, inicialmente saídas no New York Post, e não vimos nos media portugueses referências – mesmo críticas, mesmo derrogatórias – à história de Hunter Biden, filho do candidato democrata, e dos seus negócios duvidosos com empresas ucranianas, russas e chinesas, implicando o pai no financiamento e lobby desses interesses, mediante avenças e comissões.
Talvez por trás desta omissão e silêncio esteja uma espécie de teologia ateia que defende que, para combater males absolutos – os racismos, os sexismos, os nacionalismos, os populismos –, vale tudo. Assim, Sanders abandonou a corrida, Kamala Harris foi emparelhar no ticket com (o antes “racista”) Biden, as feministas esqueceram as histórias de assédio do (antes “sexista”) Senador, os advogados dos casos #Me Too decidiram, em Maio, abandonar o patrocínio de Tara Reade, que acusa Biden de a ter atacado sexualmente, e o movimento deixou cair as denúncias de oito mulheres da “conduta inapropriada” do candidato democrata.
O outro lado do abismo
E não é só o presente que vai sendo silenciado e censurado. Em questões de fundo, é extraordinário que um respeitado académico, num ensaio sobre “necropolítica”, fale compreensivelmente do nazismo – seguido do fascismo, do franquismo, da guerra civil americana, do racismo americano, de Trump, do populismo –, mas não tenha uma única linha sobre os grandes morticínios do século XX, os maiores em números absolutos e relativos, sobre a violência de Estado que se deu em países governados por comunistas: na União Soviética de Estaline, na China de Mao Tse Tung, no Camboja de Pol Pot e dos seus Khmers Vermelhos.
A revolução soviética e o comunismo trouxeram para a história política o conceito e a realidade, não só do genocídio de classe, mas do genocídio da divergência. Para eles, estando o mundo repartido entre Proletários e Burgueses e não havendo lugar, nem sendo desejável, qualquer trégua entre estes dois grupos, os explorados – ou os seus comissários políticos e o Estado em nome deles – deveriam exterminar os exploradores e instalar a igualdade. O que fizeram na Rússia, desde Lenine até Estaline e seus sucessores, em grande escala. Os números variam: Robert Conquest, autor de The Great Terror, põe o número de vítimas em 15 milhões; outros autores vão até aos 60 milhões, para todo o período de 1917-1987. De qualquer modo, é muito morto para passar despercebido num inventário necropolítico. Grupos étnicos considerados reaccionários, “inimigos do Regime”, ou “menos iguais que os outros” – Ucranianos, Tártaros da Crimeia, Chechenos, Alemães do Volga –, foram objecto de políticas de fome, deportações, genocídios, sempre no comunismo, sempre com generosas justificações ideológicas, sempre em nome de um qualquer futuro radioso. Mas nada disto consta na crónica necropolítica.
Mao Tsé-Tung procedeu também a execuções maciças de “contra-revolucionários”, seres menos clarividentes e de vistas mais curtas, dos quais deve ter executado uns dois milhões, logo no início da tomada de poder. Para realizar a reforma agrária, eliminou mais uns 50 milhões de renitentes agricultores. O Grande Salto em Frente e as fomes que causou – somadas aos horrores da Revolução Cultural, celebrada pelos esquerdistas europeus – devem ter elevado o número total de vítimas do maoismo aos 80 milhões de pessoas. O ensaio sobre a necropolítica também não dá por elas.
Outro importante genocídio comunista foi o praticado no Camboja pelos Khmers Vermelhos, apoiados por Mao e pelo Partido Comunista Chinês. Na segunda metade dos anos setenta, inspirados nos princípios igualitários da Revolução Cultural, os Khmers mataram entre milhão e meio e dois milhões de Cambojanos, cerca de ¼ da população, o maior genocídio em ratio mortos/habitantes. Os pormenores dos horrores cambojanos podem rivalizar com as piores narrativas dos campos de morte estalinistas e hitlerianos. Mas a narrativa necropolítica também os esquece.
Há uma incomensurável lista de mortes, torturas e massacres na Ásia comunista, na Coreia do Norte, no Vietname, no Afeganistão. Em África, a ditadura comunista na Etiópia de Mengistu Hailé Mariam foi das mais sanguinárias do continente e, durante 1976-1978, no seguimento da queda da monarquia de Hailé Selassié, instalou um regime de terror vermelho decalcado da prática dos bolcheviques na Rússia.
O primeiro presidente da Guiné Equatorial, depois da independência da colónia espanhola, em 1968, Francisco Macias Nguema, usou o pretexto de um golpe falhado para uma repressão monstruosa levada a cabo pelo seu partido, o Partido Único Nacional dos Trabalhadores (PUNT), e por uma milícia partidária, a Juventude em Marcha com Macias, responsável pela maioria das prisões, violações, torturas e execuções. Colhendo o melhor da teoria e da prática dos generosos ideais igualitários ocidentais e orientais e aclimatando-os, Macias combinou “socialismo científico” com bruxaria, proclamou-se Presidente Vitalício, Major General do Exército e Grande Mestre da Educação, Ciência e Cultura, além de “Único Milagre da Guiné Equatorial”. Foi derrubado em Agosto de 1979 por um golpe militar liderado pelo Tenente Coronel Teodoro Obiang Nguema, seu sobrinho e vice-ministro da Defesa. Foi julgado, condenado à morte e executado.
Macias foi uma excepção. Enquanto os altos responsáveis do regime hitleriano foram julgados e condenados à morte em Nuremberga e milhões de alemães passaram pelos tribunais aliados de desnazificação, a maioria dos dirigentes, ditadores, altos funcionários e polícias políticos comunistas não foi responsabilizada, ou sequer objecto de penas ligeiras. Aconteceu na Europa Oriental – com excepção do ditador romeno Ceausesco e sua mulher – e também na maioria dos países comunistas de outros continentes. O ditador da Etiópia, Mengistu, exilou-se no Zimbabué e, embora condenado à morte in absentia, o Zimbabué não o extraditou. Nuon Chea, o ideólogo dos Khmers Vermelhos do Camboja, morreu na prisão e os seus dirigentes andaram a monte vários anos – todos eles grandes ídolos e modelos dos nossos esquerdistas, enquanto jovens (uns converteram-se depois à democracia e ao capitalismo e abjuraram desses pecados; outros, nem por isso).
Ideias que matam
Mas mais grave que a não punição de todos estes grandes assassinos, é o esquecimento, o branqueamento e a amnistia de que foram e são objecto as ideias, doutrinas e ideologias que lhes deram origem e os legitimaram.
O princípio da igualdade e do “empoderamento” dos oprimidos é, com certeza, mais nobre, cristão e simpático do que, por exemplo, o naturalmente abjecto ideário da superioridade rácica, por defensivo que seja. No entanto, a “igualdade”, uma das mais notórias vítimas da retórica, da manipulação e do populismo dos “mais iguais que outros”, e as tentativas de a aplicar na história têm abundantes, desastrosas e mortíferas provas dadas.
Os intelectuais, académicos e jornalistas, dos esquerdistas aos direitistas envergonhados, encarniçam-se contra Trump, os populismos, os nacionalismos, “a extrema-direita”, mas não têm uma palavra, ou uma memória, ou uma prevenção contra essas outras doutrinas que já mais que provaram a sua capacidade de fundamentar regimes concentracionários brutais e impiedosos, regimes que mataram dezenas de milhões de pessoas durante o século XX, não na Idade das Trevas ou do Despotismo Iluminado, mas nos séculos democráticos e sempre em nome da implantação de uma futura idade do ouro, inclusiva e humanitária.
É curioso que, a par deste encobrimento de grandes protagonistas da necropolítica do século XX – os regimes baseados no marxismo-leninismo que aqui referimos (mais a Espanha da Frente Popular e todas as ditaduras comunistas, da Europa Oriental a Cuba) –, se persista, actualmente, na denúncia do “perigo populista” e dos “regimes populistas”, que até agora, que saibamos, não se têm empenhado em violências macabras do tipo das infligidas pelos regimes comunistas. Tudo isto, numa campanha que transformou os “media de referência” dos Estados Unidos e da Europa em órgãos de propaganda que lembram os piores totalitarismos estalinistas e hitlerianos do século passado, e que, pelo seu sectarismo e extremismo, provocam um descrédito e um divórcio que só podem gerar, do outro lado, respostas também extremas e sectárias.
Também ficam sempre por referir as purgas da linguagem, os autos-de-fé por pecados contra os novos dogmas do marxismo cultural (agora em reedição urbano-depressiva), a tentativa de menorização intelectual e de queima simbólica dos prevaricadores, a imposição de necropolíticas, como a banalização do aborto e da eutanásia, e a publicidade enganosa a novos “amanhãs cantantes”, que incluem a feliz possibilidade de contrariar o tempo, o modo e a essência da natureza humana. Até porque, quem de nós é de algum modo “ocidental” só tem, aparentemente, duas escolhas: ou se assume como vanguarda inquisitória, como porta-voz ou comissário político dos “oprimidos” (que acaba, mais uma vez, por objectificar e por manipular) contra os reaccionários (os palhaços, os populistas, os mentecaptos, os “fóbicos”), ou se cala, mede as palavras, diz o acto de contrição e reconhece, penitente, que não merece viver nem gerar vida.
Tentar construir uma casa comum parece não ser já uma opção e o caminho da cega radicalização a única escolha.
Mas nada disto importa: o que é preciso é denunciar Trump. Porquê? Porque, para a grande maioria dos nossos cronistas, Trump é, evidentemente, “o mais expressivo e o mais bem-sucedido representante actual da necropolítica”: só ele “se agarra ao poder, vicia as regras, designa comparsas para cargos chave, condiciona os tribunais,” manipula o povo.