No dia 7, soubemos que os franceses atribuíram a titularidade do futuro governo de França à Nova Frente Popular, uma junção dos seguintes partidos de esquerda, esquerda radical e extrema-esquerda: o Partido Socialista, o Partido Comunista Francês, o Novo Partido Anticapitalista e a França Insubmissa. É irónico como a França, nos anos que vêm, ficará submissa, como diria o historiador George Bensoussan.

Três aspetos tornaram as últimas eleições legislativas francesas curiosas à luz daquilo a que estamos habituados. Em primeiro lugar, o partido que supostamente representa os eleitores de centro-esquerda, o Partido Socialista Francês, aliou-se a movimentos abertamente anticapitalistas e, portanto, dispostos a uma mudança radical da sociedade tal como a conhecemos. Em segundo lugar, estas eleições ocorreram pouco depois das eleições europeias e quase em simultâneo com as eleições na Grã-Bretanha. Em terceiro lugar, o líder dos Republicanos, o partido que pretende representar eleitores de centro-direita e direita na França, declarou o seu apoio, pela primeira vez na história, ao líder do Reagrupamento Nacional (anteriormente denominado Frente Nacional). E é neste último ponto que pretendo centrar a minha atenção, pois parece-me tratar-se de um sinal de que o espaço não-socialista francês começa a dialogar enquanto aglomerado político de adultos. O espaço anti-decrescimento e minimamente comprometido com o regresso de uma Europa de nações soberanas, parece-me, está a abandonar a troca de acusações (“falsa direita”, “pseudo-direita”, “globalista”, “iliberal”) e a identificar ameaças e prioridades comuns.

Comecemos com Jordan Bardella, o jovem francês, filho de imigrantes italianos e oriundo de um dos bairros mais problemáticos de Paris e líder do Reagrupamento Nacional. Bardella exclui por completo uma hipótese do “Frexit”, distanciando-se da imagem que Marine Le Pen propagou pela França aquando da campanha presidencial de 2017. A este respeito, sugere ser influenciado por Giorgia Meloni, essa heroína do século XXI, ao satisfazer-se com a defesa do nacionalismo dentro da Europa e rejeitando, portanto, um nacionalismo que leve à dissolução completa das instituições europeias. Aliás, assumindo não prestar muita atenção à linha divisória esquerda/direita, considera que é mais importante a distinção entre aqueles que apoiam a nação e os que clamam por uma visão pós-nacional, “macronista”. Para ele, há partidos de esquerda e de direita que colaboram em políticas de “desmantelamento da soberania nacional, da soberania popular, baseadas particularmente em políticas de imigração cada vez mais consistentes”. Rompendo com uma tradição de admiração ou simpatia pelo presidente iliberal da Rússia, Bardella chamou a Putin “uma ameaça multidimensional tanto para a França como a Europa” e defende que quaisquer tentativas do país euro-asiático em interferir com os interesses russos devem ser vigiadas e devidamente frustradas. Apesar de ser contra o envio de tropas francesas para o solo ucraniano, defende o envio contínuo de armamento por parte da França à Ucrânia. Na campanha para as europeias, chegou a defender uma simplificação, uma redução dos impostos de produção para alinhar a competitividade das empresas francesas com a das europeias. Continua a defender um “patriotismo económico”, a preferência nacional e medidas que protejam a França da mundialização. Bardella afirma-se como defensor do crescimento em oposição ao declínio e contra-argumenta contra aqueles que o chamam de protecionista recorrendo ao seguinte exemplo: um país tão liberal como os EUA aplica direitos aduaneiros de mais de 20% sobre as importações de veículos chineses, para além de apoiarem e subsidiarem a produção nacional. É absolutamente contra o Pacto Ecológico Europeu e opôs-se à decisão de colocar fim à utilização dos motores térmicos até 2035. Para o líder do partido com mais apoiantes da “direita radical” francesa, a imigração continua a ser um tema central, desaprovando o Pacto Mundial Sobre as Migrações, política pública de âmbito transnacional que prevê a distribuição obrigatória de imigrantes pelos municípios (neste caso, franceses) e ameaça de sanções para os Estados-membros que entenderem não beneficiarem do acolhimento de imigrantes. Apegado a uma visão da Europa das nações e de cooperação entre os estados, combate a ideia de Europa de Macron e a sua visão pós-nacional (grande parte destas informações sobre Jordan Bardella foram retiradas de uma entrevista dada a Mickael Fonton e Sébastien Lignier, publicada no 14.º volume da série Grands Débats da revista Valeurs Actuelles).

E quem está à frente dos Republicanos? É Eric Ciotti, alguém que não se revela nada desconfortável em debater e participar em conferências ou sessões públicas com Jordan Bardella, tal como aconteceu numa sessão de esclarecimento e de divulgação dos respetivos programas eleitorais destinada a membros do Mouvement de Entreprises de France (MEDEF). Até há pouco tempo, era inacreditável que o líder de um partido de centro-direita (já para não falarmos do centro, do centro-esquerda, da esquerda e da extrema-esquerda, que muitos jornalistas parecem desconhecer) aparecesse em conferências ou eventos de divulgação programática com representantes do Reagrupamento Nacional. De facto, Ciotti, assim como os líderes anteriores dos Republicanos pós-Sakozy, como Laurent Wauquiez e Christian Jacob, não conseguiram recuperar muitos ex-membros do partido que, entretanto, se deixaram encantar pelo partido de Macron, o Renascimento. Ciotti reconhece a Teoria da Grande Substituição, defendeu a criação de uma “Guantanamo francesa” (para deter islamistas depois de terem completado a suas sentenças), defende a abolição do critério ius soli para efeitos de reconhecimento da nacionalidade francesa, já sugeriu a adição de mais 100 mil estabelecimentos prisionais e opõe-se ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.

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Outro exemplo revelador de como o partido Os Republicanos encontra cada vez mais condições para dialogar com mais frequência com o Reagrupamento Nacional é o pensamento do eurodeputado François-Xavier Bellamy. Bellamy, ao contrário de Bardella, acredita na divisão esquerda e direita e, a nível europeu, reconhece uma clivagem entre “populistas e progressistas”. O eurodeputado é inequívoco na Europa que quer: para ele, a Europa só pode “reconquistar a confiança dos cidadãos” se “mostrar que pode tornar” os países “mais soberanos e apoiá-los para que recuperem o controlo dos seus destinos”. Bellamy diz que o pensamento e a ação de Macron na Europa levam a uma “dissolução” da França dentro da Europa, dando o exemplo do apoio dos eurodeputados macronistas ao Relatório Verhofstadt, no qual estava incluído uma proposta de eliminação do direito de veto aquando da criação de novos empréstimos e impostos europeus, mesmo sem o acordo dos Estados, e recordando a expressão “federalismo clandestino” de Raymond Aron. Chamou também um falso exemplo de “progresso” na Europa ao eventual aumento de poder de controlo por parte da Comissão Europeia dos orçamentos nacionais. Considera Emmanuel Macron um homem de uma “esquerda não assumida” (em contraposição com outros políticos de esquerda como Raphael Glucksmann) e recorda que o partido “liberal” de Macron votou contra a energia nuclear, a libertação do sector agrícola de regulamentações quase infindáveis e a favor dos veículos 100% elétricos. Acusa Macron de deixar a França numa “derrapagem orçamental” e de permitir a entrada de imigrantes na França “a uma escala em colapso” (grande parte destas informações sobre François-Xavier Bellamy foram retiradas de uma entrevista dada a Laurent Dandrieu e Édouard Roux, publicada no 14.º volume da série Grands Débats da revista Valeurs Actuelles).

Apesar de tudo, bastantes discordâncias entre as figuras mais destacadas dos dois partidos (Os Republicanos e o Reagrupamento Nacional) subsistem. Ciotti, por exemplo, defendeu a reforma do sistema de pensões (subida da idade de reforma dos 62 para os 64 anos) introduzida no segundo mandato de Emmanuel Macron, enquanto o Reagrupamento Nacional votou contra esta medida e foi, inclusive, influente nas manifestações contra a mesma durante o ano passado. Outra questão que divide os dois partidos (e que, na minha opinião, estraga a imagem do Reagrupamento Nacional enquanto possível representante dos conservadores franceses a médio prazo) é o facto de os deputados dos Republicanos terem votado segundo a consciência aquando da introdução do aborto enquanto direito constitucional, ao passo que os deputados do Reagrupamento Nacional votaram em unanimidade a favor disto, argumentando que a possibilidade do aborto se enquadra no “direito natural”. Mais, o Reagrupamento Nacional ainda não perdeu o foco de conquistar os redutos (ex)comunistas e, como apontou Bellamy na entrevista acima referida, recusou acompanhar os Republicanos na tentativa de implementação de medidas como a realização de quinze horas semanais de actividade laboral enquanto condição para a atribuição do revenu de solidarité active (RSA).

A experiência tão cedo não deixará de dar razão ao Professor Olavo de Carvalho. Foi no seu artigo “O Óbvio Esotérico” (que pode ser lido no site Sapientiam Autem Non Vincit Malitia ou na página 258 do livro “O Mínimo que Você Precisa Saber para não ser um Idiota”), publicado no Diário do Comércio a 31 de Outubro de 2012, que o filósofo brasileiro explicou a razão principal do triunfo eleitoral e da normalização da esquerda: “a solidariedade profunda, a aliança” inquebrável entre os seus sectores “moderados e radicais, sempre articulados para bater no adversário com duas mãos”. E esta solidariedade verifica-se enquanto a direita (ou o espaço não-socialista) se distrai e se reduz à mesquinhez e à infantilidade: na direita, “os moderados, menos ciosos do seu futuro político” do “que da imagem que exibem na mídia esquerdista, tratam de marcar distância dos radicais, seja fingindo ignorá-los, seja mesmo insultando-os, ao menos da boca para fora”. Apesar de não ter evitado uma vitória da frente comunista, socialista, ambientalista e anti-sionista (quando não mesmo anti-semita) na França, a decisão de Eric Ciotti, não obstante as incoerências de que o Reagrupamento Nacional possa ser acusado, é salutar e revela uma maturidade de que a direita há muito tempo precisa para salvar os países da erosão das fronteiras, do imobilismo económico, das perturbações das sociedades paralelas, da indiferença perante a crescente “diversidade familiar” e das medidas repressivas dos ativistas ambientalistas e do decrescimento. Para a confiança prevalecer entre a direita francesa, a continuidade da “desintoxicação” do Reagrupamento Nacional (desvinculando-o de quaisquer vestígios de anti-semitismo próprios da esquerda e da direita iliberais) e a recuperação de grande parte do seu programa económico da década de 1980 (mas sem ser liderado por uma figura tão provocadora como Jean-Marie Le Pen) seriam bem-vindas. Para além disso, o Reagrupamento Nacional não pode continuar a trair os eleitores conservadores quando se trata de valores como a vida, incluindo a dos nascituros. E, quem sabe, talvez o Reagrupamento Nacional possa voltar a acolher a politóloga e deputada excecional que é Marion Maréchal, ou então esta possa vir a fundar um novo partido juntamente com os outros quatro eurodeputados franceses do Conservadores e Reformistas (ECR) (todos dissidentes do partido de Eric Zemmour, o Reconquista). Na direita francesa, precisa-se de comunicação, dedicação e coerência, e seria conveniente que o Reagrupamento Nacional, que é o partido do espaço não-socialista com mais potencial eleitoral na atualidade, fizesse mais para se proteger de acusações de inconsistência e de desorientação ideológica”.