É surpreendente voltar a Raymond Aron. Alguma verdade atual fervilha naquela constatação de que a esquerda concebe em certas palavras um sentido religioso. Na época em que escrevia Aron (1955) essas palavras eram «Esquerda, Revolução e Proletariado». Evocando essas palavras, que se tornavam os fins morais últimos e absolutos, nenhum genocídio seria mais do que um dano colateral alegremente suportado. Para a esquerda pós-moderna essas palavras sagradas são «Direitos Reprodutivos, Clima e Identidade de género».

Esmiuçando cada uma destas três máximas mitológicas, Aron conclui que o seu significado natural é diferente do significado religioso que lhe atribuíram os intelectuais. Esquerda não é um dos lados do espectro político. É a representação do progresso, a encarnação da moral revolucionária, tudo o que dela emana é bom, na medida em que cumpre o summum bonum do progresso rumo à utopia revolucionária. A noção de revolução também não era o golpe político ou de Estado. Era um fim moral; o fim moral último e absoluto pelo qual valia a pena pagar o preço de realidades empíricas mais ou menos genocidas. Assim, constatava Raymond Aron, era impossível uma discussão sobre os factos dos regimes comunista, o mito do nascimento de uma nova ordem social revolucionária sobrepunha-se a qualquer evidência de totalitarismo. Proletariado não era o conjunto dos empregados industriais. Era uma verdade revelada, da qual se dispensava a confrontação com factos; uma entidade indissociável do partido, cujos interesses, mesmo que os próprios não o “compreendam” só são verdadeiramente defendidos pela vanguarda partidária.

A ciência que habilitava a vanguarda partidária à interpretação dos interesses do proletariado eram as leis da história, plasmadas no socialismo “científico”. Aron classifica os marxistas como acólitos de um culto da história. As leis da história, que fazem concorrer todos os acontecimentos em direção a um qualquer (e sempre iminente) ponto culminante, tornam-se o dogma desta religião secular. É um dogma que espezinha o indivíduo até ao esquecimento. Destrói a noção de sujeito moral. Tudo é o coletivo e o seu caminho rumo à realização do sentido histórico. E para o cumprimento do sentido da história tudo será justificável, nenhum Gulag, nenhum Holodomor ou algum Grande Passo em Frente é demais; acrescentem-se vítimas após vítimas no grande e terrível espólio sangrento do comunismo, pouco importa: o único imperativo, o único dever moral é o cumprimento da história.

Volvidas quase sete décadas desde o livro de Aron, este velho marxismo está na arrecadação do pensamento político. Não que tenha sido eliminado: foi revisitado, reformado, modernizado. E por aí anda, abalando os alicerces da civilização. Os gastos e enfadonhos chavões «Esquerda, Revolução e Proletariado» foram substituídos pelos vibrantes e apaixonados soundbites «Direitos Reprodutivos, Clima e Identidade de Género». Também o dogma fundamental foi alterado. As leis da história metamorfosearam-se na justiça social, substituindo-se o culto da história pelo culto do progresso.

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Os “direitos reprodutivos” nada têm que ver com a liberdade para um cidadão se reproduzir. Na realidade representam o homicídio de um ser humano no ventre da sua mãe. A argumentação que sustenta estes “direitos” é um disparate. As evidências científicas de que a vida humana começa na conceção são manifestas e incontestáveis. Só a mesma cegueira que impedia de reconhecer os crimes contra a humanidade na União Soviética é capaz de legitimar o genocídio anual de 73 milhões de crianças mediante argumentos de negacionismo cientifico tais como “o meu corpo a minha escolha”, ou qualquer outro cuja lógica (ilógica) coloque o valor liberdade sobre o valor vida — da mesma maneira que não é possível falar de ebulição onde não existe um líquido, não é possível falar de liberdade onde não existe vida; a liberdade de acabar com a vida é a liberdade de acabar com a liberdade, e uma liberdade que se autoanula é absurda.

O clima não é o óbvio cuidado que se deve ter pelo planeta, não é o desejo de legar às gerações vindouras, tanto quanto seja possível, condições de sustentabilidade indispensáveis para o seu florescimento humano. É uma profecia apocalíptica que divide países e famílias contra si próprias na distribuição de culpas por uma eminente catástrofe climática que, segundo Al Gore (esse ilustríssimo augure), devia ter acontecido faz já dez anos. De entre todas a mais macabra é a Identidade de Género. Não é só a negação da biologia mais elementar e o patrocínio mais criminoso de uma hipnose lunática geral. Tem sido também o tremendo desrespeito pelo esforço incansável de centenas, talvez milhares, de mulheres que vêm as suas justas condecorações nos mais variados desportos a serem arrebatadas por homens que reduzem o maravilhoso universo feminino à aparência e a um pronome. Pior: tem sido um salvo-conduto para uma grosseira sexualização das crianças, introduzindo temas relacionados com a orientação sexual nas salas de aula do segundo ciclo (EUA) e fazendo tratamentos hormonais irreversíveis, por vezes sem o consentimento dos pais, a jovens de 14 anos — tratamentos esses que se tem comprovado vir a aumentar mais ainda a probabilidade de suicídio.

No século passado a velha trindade política resultou nas mais escabrosas tiranias da triste história dos crimes da humanidade. Neste nosso século, que tudo indicava trazer o triunfo final da liberdade, esta nova trindade política já alimentou intentos totalitarizantes. Já não são somente ações individuais de reitores universitários fanáticos (como tanto tem acontecido nos EUA); o próprio primeiro-ministro da Escócia implementou recentemente uma lei contra o “discurso de ódio” — seja lá o que isso for. Até a nação da Magna Charta se está a vergar à nova religião, juntando-se ao Canadá cuja lei contra “discurso extremista” tem alimentado a famosa perseguição ao Dr. Jordan Peterson, perpetrador do thoughtcrime de dizer que um homem é um homem e uma mulher é uma mulher. Também para condenar os seus súbditos aos “direitos reprodutivos” a Espanha, quiçá saudosa do seu fascismo, criminalizou o tétrico ato de rezar junto às “clínicas” abortistas (que, vale a pena sublinhar, resgatava muitas mães do desespero de deixar o Estado matar o seu filho).

Num livro publicado em 2015 (Fools, Frauds, and Firebrands), Roger Scruton mergulha a fundo nessa estrutura intelectual que sustenta o pensamento político da esquerda pós-moderna. Questionando-se sobre o real significado do ideal de justiça social compreende que se trata de um projeto de reestruturação da sociedade, a ser estabelecido não pelo livre consenso e deliberação dos cidadãos, mas «imposed on the people by a series of top-down decrees» (p. 12), ou seja, um projeto de uniformização central, mais um daqueles projetos políticos que prometendo o paraíso acabam por nos oferecer o inferno.

Ora Scruton constatava que esta tendência totalitarizante dos cultos da esquerda não era um acidente, mas, na verdade, uma condição necessária da busca de um ideal abstrato como fim moral absoluto, neste caso a justiça social. Fazendo das relações humanas lógicas de luta, dominação e opressão, dividem inevitavelmente o mundo entre culpados e inocentes; e com os culpados não existe possibilidades de criar consensos. Num mundo de culpados e inocentes não existe possibilidade de tolerância e pluralismo. Num mundo sem tolerância e pluralismo não existe democracia. Fujamos, enquanto podemos, desse mundo.