Quando a onda caiu sobre Isabel dos Santos foi como se mais nada interessasse em Portugal: um motorista terá sido agredido como retaliação por ter denunciado uma passageira sem bilhete que por sua vez denunciou uma agressão policial (a repetição da cartilha das políticas identitárias aplicada nos banlieu franceses está já a dar os seus resultados). Mas qual é a importância disso quando temos a Isabel dos Santos para comentar? A carga fiscal é ainda maior que o previsto pelo Governo? Sim, mas temos esta questão da Isabel dos Santos… O Governo acaba com a gestão privada no SNS mesmo que isso implique degradar os serviços? Pois, mas aquilo da Isabel dos Santos é uma vergonha!

O mecanismo é sempre o mesmo: a cada onda somos levados a uma nova campanha. Com estardalhaço a vaga cai sobre um alvo enquanto a onda desvia do nosso olhar os mesmos de sempre – aqueles que determinam para onde a onda nos deve levar. No fascínio e temor que nos inspira o espectáculo do naufrágio daquele até esse momento poderoso e nas tentativas de sobrevivência daqueles que o rodeavam não vemos como à nossa volta tudo se esboroa. É tão mais fácil falar sobre a justiça angolana do que sobre a portuguesa, não é?

Assim que a onda caiu sobre Isabel dos Santos foi como se Angola voltasse a ser nossa. Mais exactamente a cidadão angolana Isabel dos Santos tornou-se nossa. Só assim se entende que em Portugal, país que tem à espera de julgamento um ex-primeiro-ministro a quem é considerado quase crime perguntar do que se governa (entre os mais indignados com essa pergunta contam-se muitos daqueles que agora se indignam com o enriquecimento de Isabel dos Santos), se viva agora em estado de comoção mediática as notícias que confirmam o que há décadas, perante a indiferença geral, se diz e escreve sobre quem dirige Angola. E indiferença geral é uma forma simpática de descrever o fenómeno de enfado mostrado com aqueles que não alinhavam no fascínio com a “princesa angolana” que, ao contrário de muitos dos membros daquilo a que se chamava élite angolana, até mostrava talento para multiplicar os milhões que lhe tinham caído nos braços, pois a maior parte deles limitava-se a esbanjar de forma grotesca o que lhe calhara no quinhão. Ou saque, como lhe quiserem chamar.

Nos anos 70 a onda obrigou-nos a apoiar o MPLA. Em nome desse apoio, civis e sobretudo militares portugueses traíram negociações e colegas. Participaram activamente em manobras que visavam entregar antes da independência armas, documentos e cidadãos ao MPLA.  Nas ruas de Lisboa afixavam-se cartazes ditos anti-coloniais onde a esquerda reivindicava “Todo o poder ao MPLA”. E o MPLA exerceu-o de facto. Sempre com desmesura, fosse na repressão ou no enriquecimento.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Até que uma onda nos veio agora dizer que não há nada mais grave na nossa vida que os negócios da família do ex-presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. E como a cada onda esquecemos onde nos levou a onda anterior o que aconteceu nos anos 70 não interessa a ninguém. Também se esqueceu que levámos os anos 80 com o MPLA, que é o mesmo que dizer Angola, a ameaçar cortar relações com Portugal por causa das notícias menos positivas publicadas em Lisboa sobre o regime de Luanda. E agora todos fazem de conta que não estiveram no início deste século em jantares, reuniões, encontros… onde se debateram contratos em Angola entre risos e histórias pícaras sobre a forma como vivia e gastava a gente do ‘Futungo de Belas-corte da família dos Santos’ e seus protegidos.

Muito menos nos lembramos que em 2003, quando já a justiça francesa levava anos a investigar o Angolagate e a acusar os donos do regime angolano de corrupção (por sinal em associação com um filho do ex-presidente Mitterrand), a Internacional Socialista, presidida então por António Guterres deu luz verde à passagem do MPLA de observador para membro de pleno direito. (Tenho a agradecer à pesquisa que fiz para este artigo a descoberta de um paradigma do jornalismo luso: o caminho apontado, traçado, riscado por António Guterres. Em 2003, segundo o PÚBLICO  “Guterres apresenta caminho para nova ordem mundial“. Desde então até agora nunca mais parou!)

Nada me surpreende no que se tem escrito sobre Isabel dos Santos. O que me espanta é a desfaçatez com que o caso é apresentado. E o que me indigna é a certeza de que amanhã outra onda ,com outra Isabel dos Santos como alvo, nos continuará a prender o olhar enquanto à nossa volta se tomam decisões cujas consequências ninguém avalia e, qual areia na baixa-mar, o chão se nos escapa.

PS. A propósito, como se dirá Isabel dos Santos em chinês? Convém ir aprendendo.9