Os povos são o que pensam. Quanto mais se avançou na contemporaneidade, tanto mais o pensamento coletivo dos mais variados povos ficou dependente das correntes intelectuais dominantes.
Antes da hegemonia do progressismo esquerdista, o pensamento europeu ocidental viveu um ciclo marcado por uma tradição magistralmente expressa nas ‘Causas da decadência dos povos peninsulares’ de Antero de Quental (1871), tendência posteriormente tipificada com maior rigor em inícios do século XX. Através do conceito de regressão, devemos a Freud a possibilidade interpretativa de considerar que indivíduos e sociedades podem não caminhar necessária e permanentemente rumo a estádios de maior perfeição.
Ao remeter para o interior de indivíduos e povos as responsabilidades pelos seus destinos, a herança intelectual e cultural gerada no século XIX, discutível como quaisquer outras, teve o mérito de contribuir para um dos períodos mais férteis da vida intelectual europeia.
Em rutura com a tradição referida e, de certa forma, contra todo o passado histórico o revolucionário século XX legou-nos o domínio avassalador do marxismo cultural. Este não apenas introduziu a sobrevalorização da dimensão material das existências como pré-condição do progresso coletivo, como impôs ideais de avanço contínuo da humanidade orientados por um rumo predeterminado. Por réstias de pudor fingimos hoje ignorar que, na origem, o ponto de chegada idealizado em tal futurologia era inequívoco: a tão mística quanto trágica sociedade comunista.
De forma manifesta ou latente, consciente ou inconsciente, o tempo torna evidente que tal normatividade idealizada por Karl Marx permanece subjacente, enquanto meta-ideal, na generalidade do espectro político das esquerdas. Não admira, por isso, que as fusões entre socialistas, sociais-democratas (europeus), comunistas, trotskistas ou maoistas possam funcionar.
O balanço que pode ser feito do materialismo histórico e dialético permite inferir que se despejássemos para cima de diversos povos quantias estratosféricas de recursos financeiros (por via dos lucros do petróleo ou de outras matérias-primas ou, noutra versão, por via de empréstimos e dívidas públicas), seria muitíssimo mais exceção do que regra a rutura desses povos com os atrasos comparativos endémicos em que sobrevivem.
Isso porque os verdadeiros desafios que enfrentamos não residem na dimensão material, antes em bloqueios culturais filiados nas ancestralidades de diversos povos que se manifestam, na atualidade, em determinadas tendências de pensamentos e práticas quotidianos. Por muito que seja proibitivo afirmar o óbvio, sintoma da demência civilizacional que hoje nos domina, nos domínios cultural e identitário os europeus não se confundem com os africanos, árabes, asiáticos, americanos e vice-versa.
Foi a partir do momento em que o marxismo cultural tomou de assalto sistemas de ensino progressivamente massificados, do universitário ao básico, que se expandiu como nunca uma das mais preocupantes pandemias civilizacionais. Por isso, combater tal fonte de perversão do pensamento social é sinónimo de combater a pobreza e atraso relativo dos povos.
Começo por um sintoma menor, mas significativo. Vai sendo tempo de nos preocuparmos com as confusões culturais semeadas nas salas de aula entre monarquia=ditadura ‘versus’ república=democracia. A realidade sempre desmentiu tais evidências conceptuais instigadas pelo marxismo-leninismo. O rol de republicanos de renome do século XX com relações avessas com a liberdade e com a democracia não deixa dúvidas: Estaline, Hitler, Mao Tsé-Tung, Fidel Castro, Kim Il-sung, Robert Mugabe, Hugo Chavez. Entre tantos outros.
Tal fraude intelectual continua a ser ativamente propagada, entre outras fontes, por um excerto de um texto que mantém valor didático nos manuais escolares há muitas e muitas décadas: o ‘Manifesto da III Internacional Comunista’ de 1919. Trata-se de uma das fontes históricas cujas teses foram transformadas em intemporais evidências científicas, arte exímia dos marxistas culturais.
O sintoma referido não seria significativo se fosse um caso isolado. Mas não. Faz parte de uma bola de neve que tem gerado em parte significativa dos membros das sociedades atuais retardados intelectuais letrados, entre eles licenciados, mestres e doutores. Ao nível do pensamento social, o legado do século XX conta-se entre os mais pestilentos de sempre.
É por terem capitulado às mãos dos marxistas culturais que os sistemas de ensino se tornaram diretamente responsáveis pelo sucesso eleitoral do ódio aos ricos, zénite que garantirá a pobreza e o atraso por muitas e boas gerações.
Sem negar razões morais ao pensamento de Karl Marx na época em que foi elaborado dada a afirmação agressiva da industrialização no século XIX, Karl Popper explicou que essa carga moralista do marxismo não é dissociável das suas profundas responsabilidades na perversão do pensamento, posto que gerou uma salada russa (expressão inequívoca) ao ter confundido o inconfundível: coletivismo com altruísmo e individualismo com egoísmo.
O facto é que existem coletivismos profundamente egoístas. Os próprios marxistas sempre acusaram a burguesia dessas práticas. Hoje temos razões de sobra para acusar o funcionalismo público do mesmo. Em qualquer dos casos – e poderia citar os exemplos do funcionalismo-partidário do MPLA, em Angola, ou da Frelimo, em Moçambique – trata-se de segmentos institucionalmente organizados que nunca se importaram de sacrificar o destino coletivo dos povos à custa do egoísmo coletivo do segmento social a que pertencem.
Mas também existem individualismos profundamente altruístas. Inserem-se na longuíssima tradição filosófica e cristã ocidental e estavam ainda bem presentes na matriz intelectual oitocentista com que iniciei este texto. Em ‘A cidade e as serras’ (1901 – póstumo), Eça de Queirós retrata um parisiense, Jacinto, que decide mudar-se para Guiães, terra dos seus antepassados nobres nas serras do Douro, para aí empenhar-se em atividades beneméritas. Se transitarmos da ficção para a realidade exemplos não faltarão. Destaco o das fundações privadas cujos patronos promovem, à custa do seu sucesso individual, benefícios sociais e culturais à sua escala por vezes bem mais valiosos do que a ação de estados capturados por egoísmos coletivos.
Promovida pelo Partido Comunista Português que, com o Bloco de Esquerda, se destaca por exigências permanentes ao Estado para que dê o que deve e o que não deve, mesmo quando manifestamente o erário público não tem condições para tal e, por isso, força a máquina fiscal a rapinar rendimentos do trabalho individual e da propriedade privada, a ‘Festa do Avante!’ serve de contraexemplo. Na orientação moral da sua própria ação, os comunistas atropelam impunemente princípios que se habituaram a impor aos outros. Que se saiba, aos pobres não ficam reservadas entradas gratuitas nos três dias da festa na Quinta da Atalaia (Seixal) e muito menos podem mitigar a fome nesses dias em requintadas refeições gratuitamente fornecidas pelo PCP que, com a ‘Festa’, lucra como qualquer empresa ‘capitalista’.
Até quando admitiremos sobreviver nesta insanidade?