Não há outra questão na política portuguesa tão carregada de maus presságios como a recondução da Procuradora Geral da República. É claro que o regime não vai cair se a oligarquia afastar a Dra. Joana Marques Vidal. Num primeiro tempo, nada provavelmente acontecerá, e os oligarcas poderão dar-se grandes palmadas de satisfação nas costas uns dos outros. Mas que não tenham ilusões: no dia em que a Joana Marques Vidal arrumar a secretária, nunca mais o regime deixará de justificar todas as desconfianças.
A oligarquia está obviamente consciente do risco. Por isso, não se atreve sequer a criticar a actual Procuradora Geral da República. Prefere fazer crer que se trata apenas da aplicação automática de uma regra que impediria os procuradores-gerais de acumular outro mandato. Não vale a pena sequer discutir o caso nesses termos. O que está em causa não é um segundo mandato da Procuradora Geral da República, mas a independência de uma instituição que, neste momento, só esse segundo mandato pode efectivamente garantir. E não apenas por causa da Dra. Joana Marques Vidal, mas também por causa daqueles, entre os seus antecessores, que tão bem se adaptaram ao costume de não deixar investigações incomodar quem mandava no país. Daí a diferença que fez a actual Procuradora Geral da República. Daí, também, a diferença que pode fazer a sua substituição.
Nos últimos quatro anos, a crer na acusação da Operação Marquês, a justiça portuguesa não descobriu apenas duas ou três maçãs podres no cesto: desmantelou um mecanismo que, no tempo do governo socialista de José Sócrates, terá unido o poder político e o poder financeiro numa conspiração para subverter o regime democrático e a economia portuguesa. Na sequência dessa conspiração, o país perdeu bancos e empresas. É preciso que a justiça portuguesa possa agora julgar esse caso, sem que sob esse julgamento recaia a pressão indirecta que poderia resultar do afastamento dos responsáveis pelos organismos que conduziram a investigação. É isso que está em causa na recondução da Dra. Joana Marques Vidal, e não quantos mandatos um procurador deve ou não servir.
Mas digamos tudo: o problema é mais grave porque Portugal é, neste momento, governado por aqueles que estiveram com José Sócrates no seu governo quando o então primeiro-ministro cometeu os crimes de que é acusado. Não vale a pena dizer que Sócrates se afastou do PS: o PS continua a ser dirigido pelos seus antigos ministros, secretários de Estado e assessores. Se nada tiveram a ver com a conspiração socrática, tal como descrita pela justiça, seria agora do seu maior interesse que nada tivessem também a ver com o respectivo processo judicial. Mas tal como a mulher de César, não lhes basta aqui serem honestos: têm também de o parecer, e nada como absterem-se de opções que, independentemente de estarem ou não dentro das suas prerrogativas, possam ser interpretadas como interferências.
É verdade que quase todos os partidos têm antigos dirigentes entre os arguidos, acusados e condenados dos últimos anos — pelas mais variadas razões (no PSD, houve Oliveira Costa, Miguel Macedo e agora os caciques locais da Operação Tutti Frutti). Mas o saneamento da actual Procuradora Geral reforçaria fatalmente a impressão de que, apesar das faltas serem gerais, só esta direcção do PS tem de facto o que se pode chamar “um problema com a justiça”.
O lugar de Joana Marques Vidal depende do governo, mas o governo não se deve esquecer que a sua credibilidade depende de Joana Marques Vidal. A pedra que afastar será a pedra angular.