PSD, PS, Bloco de Esquerda, Chega, PCP, Iniciativa Liberal, CDS. Como é que estas entidades, os partidos políticos, existem para nós, que tipo de realidade lhes atribui o cidadão comum no dia-a-dia e quando se chega ao momento de votar? Sem entrar nos arcanos da sociologia e da chamada “ciência política”, a resposta é simples: são a encarnação de pontos de vista diferentes e de variável clareza sobre o que a sociedade é, sobre o que deve ser e, em larga medida, sobre a sua história. E, detalhe importante, pontos de vista que entram em conflito uns com os outros, nos três planos indicados: passado, presente e futuro. O conflito, no domínio político, é inerente à noção de ponto de vista, já que nenhuma demonstração perfeita, capaz de assegurar um acordo universal, é possível nestas matérias.
É isto, entre outras coisas, que a boa filosofia política – aquela que se ocupa verdadeiramente da vida política e que a procura tornar inteligível – tenta trazer à luz do dia, elucidar. Qual a natureza do conflito político? Quais as paixões – ou, se se preferir, as emoções – que nele se inscrevem? Qual a sua relação com a liberdade? Quais os bons conflitos – e quais os maus conflitos? E qual o lugar do conflito político na sociedade: no centro ou na periferia?
Um volume, organizado por Diogo Pires Aurélio e André Santos Campos, publicado no ano que agora acaba, lida com todas estas questões. Intitula-se Machiavelli’s Discourses on Livy. New Readings (Brill) e é, surpreendentemente, a primeira obra colectiva dedicada à análise exclusiva de um dos maiores textos da história do pensamento político, os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, de Maquiavel. Certamente que várias outras questões são nele abordadas para além da noção de conflito, mas tal noção percorre o livro de uma ponta a outra. E a sua abordagem, por mais académica (no melhor sentido da palavra) que seja, ilumina excelentemente, mesmo para o não-especialista, o profundo pensamento do grande florentino. Tornar-se-á, sem dúvida, uma obra de referência para quem se dedica ao estudo de Maquiavel. Mas tem igualmente todas as condições para interessar aqueles que procuram pensar a política para lá dos costumeiros discursos edificantes.
O que nos diz Maquiavel sobre o conflito político? Primeiro, que ele é coextensivo à vida em sociedade. Não há uma génese histórica do conflito: ele faz, desde o início, parte integrante da sociedade. E o seu motor são as paixões humanas, nomeadamente o ódio, o medo, a ambição e a inveja, potenciadas pela memória e a imaginação. Paradoxalmente – é o golpe de génio de Maquiavel –, o conflito engendrado por tais paixões alarga o espaço da liberdade no interior da sociedade, já que a possibilidade da tirania se vê restringida pela oposição conflitual dos interesses dos “grandes” e do povo, propiciando leis favoráveis a um “viver livre”, um “viver político”, um “viver cívico”. Não significa isto, no entanto, que o conceito de conflito seja unívoco em Maquiavel. Há, naturalmente, bons e maus conflitos. São positivos os conflitos que contribuem para o desenvolvimento da sociedade nos seus vários aspectos, incluindo económicos e artísticos, e negativos aqueles que o inibem. A distinção entre ambos, supõe-se, deverá estar a cargo do juízo político.
Seja como for, o elogio da desunidade como elemento criador da liberdade levado a cabo por Maquiavel é indiscutivelmente um momento crucial, um ponto nodal, na história do pensamento político. É a desunidade que forma o maior obstáculo à vitória da tirania e que proporciona, através do conflito, as condições para o florescimento da sociedade. E esta lição vale muito para além dos contextos particulares que são o objecto da análise de Maquiavel: a república romana e a Florença sua contemporânea. Vale para os nossos dias como condição da existência de uma sociedade aberta.
Resta uma pergunta: deve o conflito dar-se no centro da sociedade – digamos, nos nossos dias: deve ele ser representado na disputa entre os principais partidos? – ou ser relegado para a periferia – mais uma vez, nos nossos dias: deve ele exprimir-se apenas nas franjas do sistema político? É, de um certo modo, a questão do populismo que aqui aflora. Pois se a dimensão conflitual da política – conflito de visões sobre a sociedade, conflito de projectos – é abandonada pelas principais forças políticas, estiolando no seu seio, ela retorna fatalmente, como todo o recalcado, na periferia partidária, e retorna magnificada, sob a forma de um mau conflito.
De um certo modo, é este o tema de um outro excelente livro publicado também este ano por Alexandre Franco de Sá, Ideias sem centro. Esquerda e direita no populismo contemporâneo (D. Quixote). O que o autor nos mostra, depois de uma rigorosa análise de alguns conceitos fundamentais da filosofia política – incluindo uma muito pertinente discussão das relações entre democracia e liberalismo –, é que o chamado populismo não representa o avesso da democracia, mas sim uma possibilidade que intimamente a habita: há uma continuidade entre a democracia e o populismo.
É tomando por base essa continuidade que Alexandre Franco de Sá distingue populismo de esquerda e populismo de direita. O primeiro, que foi abundantemente teorizado por alguns dos seus defensores, centra-se numa visão agonística da sociedade, segundo a qual o povo é algo de profundamente heterogéneo que apenas recebe a sua unidade através da oposição às elites. Dito de outra maneira: o povo é uma construção operada por um processo radical de antagonização, por um conflito exacerbado. Os antepassados do populismo de esquerda contemporâneo seriam os populistas russos do século XIX, na sua associação ao niilismo e ao terrorismo. As análises propostas são detalhadas e ocupam-se eficazmente da nossa actualidade. A nova esquerda populista, nota acertadamente o autor, pouco tem a ver com o marxismo, por múltiplas razões que não cabe aqui referir.
Por sua vez, o populismo de direita – que, igualmente, nada tem a ver com o fascismo ou o nacional-socialismo – assenta numa concepção inteiramente diversa do povo. Naquelas que são talvez as páginas mais originais do livro e aquelas que deveriam suscitar maior discussão, procura-se mostrar que tal populismo prolonga um “populismo originário” que se apresentaria em certas formas do populismo americano do século XIX. O “populismo originário” basear-se-ia na ideia de uma “comunidade pré-política” prévia a qualquer antagonismo. A sua natureza seria essencialmente reactiva e seria a consequência da rejeição permanente do passado por parte das elites.
Tal como em relação ao volume organizado por Diogo Pires Aurélio e André Santos Campos, limitei-me, com grande pena minha, a alguns traços muito gerais. Mais. Seleccionei esses traços gerais em função da questão que mais particularmente me interessa: qual o lugar que deve ocupar o conflito político nas democracias liberais – o centro ou a periferia? A resposta, quanto a mim, não merece dúvida: o centro. Só um conflito aberto de projectos e de programas entre as forças políticas mais significativas na sociedade pode trazer consigo o desenvolvimento económico e cultural. Pelo contrário, a sua confusa indistinção provoca a estagnação. E, com a estagnação, essa espécie de centro reificado, tornado numa coisa sem vida, incapaz de conflitualidade, possibilita que os populismos periféricos de esquerda e de direita venham a ocupar o espaço que antes era o lugar liberal das democracias em nome de uma democracia diferente, iliberal. Alexandre Franco de Sá dá-nos, muito judiciosamente, o exemplo do Brasil de hoje, onde os populismos de esquerda e de direita se digladiam, tomando destrutivamente conta de tudo, e isto, vale a pena notá-lo, numa sociedade que contém em si uma extraordinária riqueza cultural.