Há muito tempo que vem sendo demonstrada a ligação entre poluição atmosférica (em particular a resultante da exaustão automóvel) e um conjunto de patologias, a saber: cancro do pulmão, problemas cardiovasculares, AVC e até demência. Segundo um estudo publicado em 2022 pela Agência Ambiental Europeia (European Environmental Agency) relativo a 2020, 96% da população urbana do Velho Continente esteve exposta a níveis de partículas finas superiores ao nível-padrão que a OMS considera aceitável para a saúde humana. As partículas finas, como é sabido, são um subproduto da combustão fóssil interna dos automóveis libertado pelos escapes, e que, ao serem introduzidas nas vias respiratórias pelo simples ato de respirar, contribuem para aquelas e outras patologias. O mesmo estudo conclui ainda que, nos 27 estados da União Europeia, cerca de 238 mil mortes prematuras foram causadas, direta ou indiretamente, por essa exposição, nesse mesmo ano.
Quanto à demência, os estudos sugerem que a correlação entre esta patologia e a poluição atmosférica é real, não apenas no que concerne às partículas finas libertadas pelos escapes automóveis, mas também de outras fontes, como incêndios florestais, fumo do tabaco, processos agrícolas, etc. Só não se conhece bem o processo que a causa. Para tentar conhecê-lo, cientistas das universidades de Manchester e Birmingham, no Reino Unido, assistidos por profissionais de saúde do NHS (o sistema nacional de saúde britânico), estão atualmente a realizar um estudo que conta com a participação de vários voluntários. Estes ofereceram-se para inalar, durante um certo período, vários tipos de poluentes, como gases de escape automóvel, produtos de limpezas e fumos de cozinha. O que está em causa, sublinho, não é saber se há ou não há relação causa-efeito entre poluição e demência, dado que parece estabelecido, mas como é que ela acontece.
Dito isto, é urgente acelerar a descarbonização da economia e, em particular, é preciso aprender a usar o carro com mais parcimónia (ou então optar por veículos não-poluentes, ou menos, como os elétricos). Não se trata aqui da questão ambiental mais global do chamado “efeito de estufa”, que tanto se deve a causas humanas como naturais. Trata-se aqui de um problema concreto de saúde pública tão ou mais premente que o problema do tabaco. Hoje, conhecem-se bem os efeitos do fumo tabágico, quer ativo quer passivo, e a lei portuguesa tem, pouco a pouco, refletido esse conhecimento, ao transpor diretivas europeias anti-tabágicas: primeiro com a proibição do tabaco em espaços fechados, e em breve com uma série de outras restrições a serem implementadas faseadamente até 2025 (Proposta de lei 88/XV). No entanto, a pressa para implementar medidas que reduzam o tráfego automóvel nas cidades, ou que pelo menos favoreçam a compra e o uso de veículos não-poluentes, parece ser muito menor, ainda que o problema das partículas finas não deva nada, em termos de malefícios para a saúde pública, ao tabaco.
Pouco está ser feito também para sensibilizar os condutores de veículos de combustão fóssil para a responsabilidade social que lhes cabe, ao contribuirem, com a exaustão dos seus automóveis, para o “fumo passivo” dos não-condutores. Tal como no tabaco, é necessário que quem usa carro aprenda a fazê-lo de forma responsável, não apenas para não provocar acidentes ou atropelar peões, mas para evitar prejudicar a saúde dos seus concidadãos (e a sua própria, obviamente). O ar é de todos e, como tal, todos temos responsabilidade na manutenção da sua qualidade, e também o direito de não sermos prejudicados apenas por realizarmos um ato tão simples e necessário como respirar. Andar a pé (que bem que faz!) ou de transportes com mais frequência; evitar o uso do carro em deslocações curtas ou quando não há pressa ou horários a cumprir; promover o carsharing – eis algumas práticas simples que um condutor responsável pode (e deve) implementar.
Mas sabemos quão forte é o lobby automóvel e aquele que lhe está diretamente associado – o dos combustíveis fósseis. Em vez de diminuir, o número de carros está a aumentar de ano para ano, especialmente nas grandes cidades. Uma notícia recente do jornal Público tinha como título a pergunta: “Porque estão as ruas de Lisboa e Porto cada vez mais cheias de carros?” (Público, 16/12/2023) Pois, é mesmo essa a perplexidade, que todavia não traz nenhuma novidade de outro mundo. O carro continua a ser, para muita gente, sinónimo de estatuto social, sem o qual não querem nem sabem viver.
Trata-se, portanto, num certo ponto de vista, de um problema cultural. Noutro ponto de vista, trata-se também do problema já referido do forte lobby automóvel, associado ao dos combustíveis fósseis, que de alguma forma tem travado a transição energética (e mental) necessária. Trata-se também de um problema político, que se traduz na falta de coragem daqueles que exercem cargos nacionais e autárquicos em enfrentarem esses interesses, bem como os interesses de quem não quer abdicar do conforto do seu automóvel nos centros urbanos, mesmo quando o seu uso ultrapassa o estritamente necessário. Não se pode agradar a todos. Mas a verdade é que as cidades do futuro, aquelas que verdadeiramente se poderão chamar de sustentáveis, serão aquelas que derem cada vez mais relevância ao espaço público para as pessoas, e não para os carros. Não basta de vez em quando fechar esta ou aquela rua ao trânsito para simular a sustentabilidade: é preciso fazer mais e de forma mais duradoura. É preciso apostar forte nos transportes públicos e desincentivar o uso de automóvel nos centros urbanos, por exemplo através de taxas de circulação. Nova Iorque, por exemplo, planeia vir a cobrar uma taxa aos condutores que queiram entrar na cidade, a chamada taxa de congestionamento, precisamente para reduzir o trânsito e melhorar a qualidade do ar. É uma medida polémica, mas necessária. Por certo muitas outras cidades o farão no futuro, haja para tal coragem política.
Fala-se tanto no SNS e nos seus problemas, na falta de médicos e no colapso iminente do sistema, incapaz de dar resposta a todos, mas não se fala em políticas públicas de prevenção da saúde e nos problemas – no caso, ambientais – que contribuem para a sua deterioração. A sustentabilidade do SNS também se faz de prevenção e promoção da qualidade de vida, desde logo combatendo a raiz ambiental (e social, há que referir) de muitas patologias. Para isso, a questão da poluição atmosférica derivada da combustão fóssil tem necessariamente de ser tida em conta, porque é um problema real e premente, sobretudo nas urbes de média/grande dimensão.