Percebo bem que dirigentes do PS queiram circunscrever os escândalos dos alegados pagamentos a Manuel Pinho e José Sócrates a casos isolados, como se eles actuassem sozinhos. E também percebo que apoiantes do anterior governo queiram circunscrever ao Partido Socialista a crise ética em que vivemos. Mas, infelizmente, não dá. A crise é mesmo do nosso regime. Gostava muito de dizer que o problema é o Sócrates e o Pinho. Ou até que o problema é o Partido Socialista. Mas, infelizmente, todos sabemos que não é verdade.
Desde o Estado Novo que o capitalismo português é uma rede de interesses, em que política e negócios se misturam da pior maneira, e isso não mudou com a democracia. Basta lembrar como nasceu o actual regime económico-financeiro: com privatizações em que os amigos foram sendo protegidos, e as empresas foram sendo entregues não a quem pagasse mais por elas, mas a quem os políticos queriam. Foi Mário Soares que garantiu a Ricardo Salgado o financiamento de que este necessitava para ficar com o BES. Nas palavras de Mário Soares, tratou de “arranjar dinheiro a um tipo que o não tem, mas poderá vir a ter”. Mas este é apenas um exemplo. É fácil dar outros. Foi o governo de Cavaco Silva que encontrou formas de financiar Champalimaud para que este ficasse com a Mundial Confiança, que serviu de plataforma para depois comprar o Banco Pinto & Sotto Mayor. É este o capitalismo português: uma teia de favores e de pagamento de favores entre o poder político e o económico.
Insisto, sei que é muito cómodo ver apenas o Partido Socialista envolvido nestes esquemas. E é tão pena que não seja assim. Basta lembrar três nomes: José Oliveira e Costa, Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Cavaco Silva, Duarte Lima, líder parlamentar do PSD de Cavaco Silva, e Dias Loureiro, um dos ministros mais poderosos de Cavaco Silva. Os primeiros dois já foram condenados a severas penas de prisão; o segundo até de homicídio foi acusado! E Dias Loureiro viu as acusações contra si retiradas num despacho de arquivamento que garantia que «subsistem as suspeitas, à luz das regras da experiência comum», que indicam que andou metido em negócios cujo objectivo «foi tão só o enriquecimento ilegítimo de terceiros à custa do prejuízo do BPN, nomeadamente de si e do Dr. Oliveira e Costa». É difícil alguém ser ilibado de forma tão condenatória como Dias Loureiro o foi. Os governos do PS podem ter Manuel Pinho e Armando Vara, mas, reconheça-se, o PSD tem cromos suficientes para a troca. Não falo de Sócrates porque, realmente, nada se lhe compara.
E, como lembrou Nuno Garoupa, nas Conversas Cruzadas da semana passada, na Rádio Renascença, até hoje não se ouviu o CDS pronunciar-se «sobre os submarinos e o facto de haver pessoas na Alemanha a cumprir penas de prisão por corromper e em Portugal os processos estarem arquivados». E, como se vai percebendo graças aos Panama Papers, há mesmo pagamentos feitos sobre este assunto. Só falta saber a quem.
Não consigo deixar de concordar com a eurodeputada do Partido Socialista Ana Gomes quando diz que é «absolutamente escandaloso que os procuradores até hoje não tenham ido investigar os interventores políticos neste processo. Paulo Portas, Mário David, que era conselheiro político de Durão Barroso, e o próprio Durão Barroso. O processo documenta a ligação direta entre Paulo Portas e Ricardo Salgado. Quem impôs o BES aos alemães no esquema de engenharia financeira para financiar a compra dos submarinos foi Portas, quando eles queriam a Caixa Geral de Depósitos. Isso está no processo. E a decisão política de entregar o negócio aos alemães é de Durão Barroso. Isso também está no processo. Com tudo o que se sabe agora sobre o Grupo Espírito Santo, Ricardo Salgado, Hélder Bataglia e o esquema da ‘Operação Marquês’, por que razão não atuariam também assim noutras vezes anteriores?» Bem sei que muitos a consideram uma desbocada, mas a verdade é que Ana Gomes começa a tornar-se a consciência do regime democrático português.
E não vale a pena pensar que os casos que referi são apenas casos de polícia. Há muitos casos que o não são e que ilustram bem naquilo que se tornou o capitalismo português. Basta ver como Joaquim Ferreira do Amaral foi trabalhar para a Lusoponte, depois de enquanto Ministro das Obras Públicas lhes ter garantido rendas fabulosas, ou de como a construtora Mota Engil não deixou que o ex-Ministro das Obras Públicas do PS Jorge Coelho ficasse desempregado muito tempo. Casos destes são às dezenas ou centenas. Muito mais exemplos poderiam ser dados. Não foi Miguel Frasquilho, que hoje está na administração da TAP, que também recebeu umas transferências muito mal explicadas do BES? E se acrescentarmos a porta giratória entre grandes empresas e reguladores sectoriais percebemos por que motivo vivemos no paraíso das rendas. E, na verdade, há muitos deputados que fazem aquilo de que Manuel Pinho é acusado: receber um ordenado enquanto estão em funções.
Mas somos tão dóceis. Isso diz tanto sobre nós. É quase comovedora a forma como somos apanhados de surpresa com estas notícias sobre Pinho. Tivemos cá a troika que no seu programa para a regeneração da economia portuguesa tinha como ponto essencial o combate às rendas. Mas a EDP soube precaver-se e contratou Eduardo Catroga logo depois de este ter negociado o memorando com a troika pelo lado do PSD. E, à medida que o tempo passava e as rendas se mantinham, nem um sobrolho levantávamos. Henrique Gomes, secretário de Estado da Energia na altura, bem clamou contra os privilégios da EDP. Mas era como se lutasse contra moinhos de vento. Foi corrido em 9 meses. Tivemos um ministro da Economia decente, o Álvaro Santos Pereira, que quase explicitamente pediu à opinião pública que o apoiasse nessa luta dizendo-nos que com a demissão de Henrique Gomes se tinham aberto garrafas de champanhe no escritório de António Mexia. António Mexia que era (e é) Presidente do Conselho de Administração da EDP e que foi agraciado por Cavaco Silva com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Empresarial. Tudo isto se passou à nossa frente, ao mesmo tempo que a nossa preocupação era com o facto de termos um ministro que era tão pacóvio que queria ser tratado por Álvaro. Que alívio que foi quando o Álvaro foi substituído por um ministro a sério, com peso político: o António Pires de Lima.
Tal como foi à nossa frente que a EDP, de António Mexia, entregou mais de um milhão de euros à Columbia University, onde Manuel Pinho estacionou como professor visitante. Posso estar a lembrar-me mal, mas não me lembro de qualquer comoção nacional contra este “patrocínio”. E a docilidade continua. António Mexia foi constituído arguido por causa das rendas que o Estado paga à EDP, por despacho de Manuel Pinho, a qualquer momento, pode ver deduzida uma acusação, mas nem assim é seriamente confrontado pelos jornalistas que o entrevistaram aquando da sua recondução como presidente da EDP.
Este meu artigo não é muito mais do que um desabafo, pelo qual peço desculpa. Mas, na verdade, se não podemos esperar que sejam os actuais políticos, por sua iniciativa, a regenerar o regime democrático e se não podemos contar com a sindicância dos jornalistas nem para incomodarem os compagnons de route de Sócrates ou de Manuel Pinho nem para questionarem os novos Ricardos Salgados, terão de ser os portugueses a mobilizarem-se com esse fim. Não há qualquer fatalidade na corrupção. Os dados internacionais dizem-nos que os regimes mais limpos são os mais democráticos. Mas enquanto continuarmos tão dóceis, tão compreensivos, a gostar muito de mandar bocas pouco consequentes, mas sem uma verdadeira sindicância no combate a conflitos de interesses, não haverá forma de impor a limpeza que o nosso sistema político-económico necessita. Quando muito, vai-se queimando aqui e ali um bode expiatório, de que Manuel Pinho é apenas o último exemplo.