A semanas do seu congresso, o PS encontra-se entre duas encruzilhadas que poderão ser decisivas para o futuro. Uma delas tem que ver com o seu projecto político e com os seus aliados preferenciais. A outra, obviamente, consiste no que fazer do desastroso legado de José Sócrates no partido e no país.

Num momento em que todas as sondagens dão uma larga vantagem ao Partido Socialista e em que a grande dúvida é a de saber se o PS terá maioria absoluta ou não, é atrevido dizer que estas encruzilhadas serão decisivas para as próximas eleições. Por isso não o farei. Digo apenas que são decisivas para mim e para a consideração que terei pelo PS no futuro.

Relativamente à primeira, dentro do governo, adivinham-se duas linhas. Uma que quer continuar de braço dado com os partidos à sua esquerda, outra que quer que o PS se liberte desses partidos. Estas escolhas correspondem a duas visões distintas de como funciona a economia e dos motivos para a razoável performance económica de Portugal neste últimos anos. Apesar de interessante, deixarei para depois uma reflexão sobre esse assunto, até porque quem me lê regularmente saberá com qual das visões me identifico.

Relativamente ao legado do ex-militante socialista, o PS declara-se em peso envergonhado por aquilo de que é acusado. Sabe a pouco. Como diz Sérgio Godinho, “esperar tantos anos torna tudo mais urgente e a sede de uma espera só se estanca na torrente”. É evidente que, quando a prisão de Sócrates aconteceu, as eleições estavam à porta e não havia margem para fazer um grande debate interno. Mas, entretanto, já passou muito tempo e, ao fim de três anos e meio de espera, não se podem ficar por aqui.

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Nem todos tiveram de esperar por Abril/Maio de 2018. Lembro-me, por exemplo, de Pedro Adão e Silva, que desde a primeira hora afirma que o que foi assumido pela defesa de Sócrates levantava problemas éticos severos e há muito que defende que o PS devia ter tomado uma posição. Também Isabel Moreira o fez em 2016, em entrevista ao Sol.

(Já agora, a jornalista Fernanda Câncio, de quem sou amigo, já em 2015, numa queixa enviada ao conselho deontológico do sindicato de jornalistas, e em 2016, numa edição especial da Visão, escreveu que as relações financeiras de Sócrates eram eticamente reprováveis e requeriam explicações.)

Mas o facto de alguns não terem tido de esperar por 2018 para discutir apenas aumenta a gravidade dos que preferiram ficar em silêncio. Por isso digo que, se o debate no PS for apenas para falar mal de Sócrates (e de Pinho ou de qualquer outro ex-governante que entretanto seja descoberto), então será o mesmo que nada. Será apenas um sacudir de responsabilidades, dando porrada num morto político. Para isso, não eram necessários tantos anos de espera.

É fácil, demasiado fácil, dizer em 2018 que Sócrates é um escroque e que têm vergonha dele. O mais importante é saber que lições retira o PS deste assunto. José Sócrates chegou onde chegou porque teve o apoio de muitas pessoas dentro do partido. António José Seguro viu a sua liderança minada por um grupo parlamentar e por vários dirigentes partidários que não aceitaram o corte que quis fazer com o socratismo. Corte quer (parcialmente) com as políticas económicas, quer com o legado de compadrio, teia de interesses e corrupção que marcaram os seus mandatos. E, se é bonito ver que o tempo vai fazendo justiça a Tózé Seguro, também é importante perceber quem dentro do PS foi enganado e quem foi cúmplice.

Percebo que se queira empurrar tudo para Manuel Pinho, mas, na verdade, para este assunto, Pinho é um caso quase irrelevante, dado que é uma carta fora do baralho socialista. Mas gostaria de perceber melhor que explicações têm socialistas destacados a respeito de suspeitas que sobre eles recaíram. Não pretendo desfiar um rol de nomes e de casos suspeitos, até porque o artigo tem de ter um fim. Mas convenhamos que ler que o Ministério Público mandou arquivar os indícios relativos ao casal Silva Pereira porque «prova reunida não permite sustentar que ao celebrarem os contratos acima mencionados, com ocultação de identidade do arguido José Sócrates, aqueles intervenientes tivessem representado a hipótese de este último pretender criar opacidade entre a sua pessoa e a origem dos fundos para obstar à deteção de sua atividade ilícita» não nos deixa descansados. Também recentemente, Arons de Carvalho, mandatário nacional da recandidatura de Costa ao Partido Socialista, não só disse que não achava reprovável que José Sócrates vivesse de empréstimos, como há indicações de que terá sido, dentro da ERC, um instrumento de Sócrates, com este a dar-lhe instruções sobre como deveriam ser as votações. Estas pessoas, entre muitas outras, enganaram-se inocentemente? Foram cúmplices activos ou passivos? São para manter no partido em lugares de destaque?

Alguns esclarecimentos são devidos. Não tenho dados suficientes para as condenar, naturalmente. Nem a estes nem a outros. O silêncio é, obviamente, uma opção, mas não é uma clarificação, enquanto não se explicarem não tenho nenhum motivo para confiar politicamente neles.

Não é necessário um exercício de autoflagelação, mas, por favor, lembrem-se que a arrogância galambina já cansa. No fim, retirem-se as consequências políticas. Quem foi cúmplice que se afaste da vida pública. Quem foi enganado, ou se deixou enganar, para além do razoável que saia também.

Não desejo mal nenhum a quem foi vítima de José Sócrates e não pretendo participar em qualquer forma de caça às bruxas. Mas não há motivos para considerações grandiloquentes: cargos políticos são, por natureza, temporários; quem não tem condições políticas para continuar retire-se. Volte para o seu posto de trabalho e continue a sua vida. Para que o PS recupere a confiança de pessoas como eu, este exercício de clarificação interna é condição necessária.