Os médicos fazem o juramento de Hipócrates e comprometem-se com um código ético-deontológico que, no fundo, consagra o princípio da dedicação e da lealdade para com as pessoas e os doentes. Porém, em nenhuma circunstância os médicos, que exercem uma profissão legalmente regulada (com direitos e deveres), juram dar literalmente a própria vida ou a comprometer a própria saúde pela de outro ser humano. Aliás, como é sabido, nos cursos de suporte básico de vida (SBV) é ensinado que, caso não estejam reunidas as condições de segurança que salvaguardem a vida ou a saúde dos profissionais, é legítimo que eles ou não se aproximem da pessoa a necessitar de cuidados (por exemplo, uma vítima inconsciente encurralada num edifício em chamas prestes a ruir), ou não realizem determinadas manobras que coloquem em causa a sua própria saúde (por exemplo, no caso de uma vítima inconsciente e desconhecida, a necessitar de manobras de SBV, que sangra pela boca, é aceitável não fazer as insuflações boca a boca na ausência de material apropriado). Assim, a gratidão generalizada relativamente ao esforço dos profissionais de saúde em geral no combate à Covid-19, manifestada por palmas, cantorias ou epítetos demagógicos como “heróis”, pode ter sido muito romântica e enternecedora, mas não acrescentou (nem acrescenta) nada de verdadeiramente útil à acção desses profissionais. A vasta generalidade dos médicos (assim como, certamente, dos outros profissionais de saúde) não se rege por “palmómetros”! Procuram, sim, exercer a sua atividade profissional com brio, mesmo quando as condições laborais não são as exigíveis. Assim, merecem respeito (sempre, não apenas numa situação de aperto) pela sua abnegação e dedicação e devem poder exercer a sua profissão com rigor, eficácia e com a segurança que as circunstâncias exijam. Afinal de contas, não serão os profissionais de saúde o SNS? (“Não, senhora ministra, não devemos nada ao SNS”).

Parece-me, também, importante desmistificar outra ideia que contribui, ainda, para uma certa visão distorcida e desdenhosa da profissão médica. Nada impede, obviamente, os médicos de abraçarem missões de índole humanitário ou outras a título pro bono ou remunerado, assim como nada impede professores, engenheiros, advogados e outros de o fazerem. Ser divinamente imaculado não é condição sine qua non para poder exercer Medicina. Por isso, sugerir, como tantas vezes acontece, que os médicos são mercenários porque o que querem é ganhar dinheiro, não só é injusto como ofensivo. Não é crime, nem motivo de vergonha, querer ser justamente remunerado pelo exercício honesto da profissão exigente que escolheram e para a qual se prepararam durante mais de uma década.

No livro Aprender a Rezar na Era da Técnica, de Gonçalo M. Tavares, que conta a história de um cirurgião, Lenz Buchmann, com traços caracteriais marcadamente sublinhados por uma deficiente empatia e distanciamento humano em relação aos doentes, há uma passagem curiosa que exponho a título de reflexão. Lenz Buchmann, cujas acções são carburadas por uma ambição e necessidade de poder desmedidas, é um cirurgião tecnicamente irrepreensível e único. A dada altura um doente, a quem ele salvou a vida, diz-lhe, em tom de agradecimento: “Doutor, você é um excelente ser humano”. Lenz responde-lhe: “Não, sou médico.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR