Não tenho habilitações académicas comparáveis às do Professor Doutor Domingos Faria (Domingos Faria, PhD | Cv) de modo a disputar ao mesmo nível uma polémica filosófica sobre as teses por ele argumentadas no artigo intitulado Os erros da ética sexual da Igreja católica, publicado no Observador no passado dia 1 do corrente. Erros na Igreja sempre os haverá, provocados pelo seu elemento humano, mas não são estes. Nos cinco comentários anexos ao artigo, sob o pseudónimo de Coronavirus corona, já alguém respondeu assertivamente e especificamente a cada uma das asneiras deste Doutor em Filosofia da Religião, designadamente aquela calinada de que “a lei natural é uma teoria ética, fundada por Tomás de Aquino”, quando é o próprio São Tomás a remeter-se para os filósofos gregos da antiguidade e os Padres dos primeiros séculos da Igreja. Mas o meu ser católico não resistiu ao ímpeto de escrever algumas observações e comentários que a astuta proza do artigo suscitou de imediato na minha mente; isto, em jeito de alerta para os católicos menos atentos ou informados.
No seu artigo, o autor não tem em consideração dados da identidade ontológica da Igreja que me parecem indispensáveis para se compreender de que fontes primárias brota o ensino (ou magistério) eclesial e qual é a sua natureza epistemológica. Sem esses dados a Igreja resumir-se-ia efectivamente a uma vetusta organização meramente humana, onde pontificaria uma elite de sábios que ao longo da sua história bimilenária teriam produzido eles mesmos uma sabedoria plasmada em textos de autoridade variável e alteráveis conforme a evolução do mundo e da história e os impulsos da mente e da sensibilidade dos homens que moldam as épocas do pensamento, tal como parece mostrar a visão apenas filosófica do autor.
Ainda que a filosofia, nos seus diversos ramos, seja uma das mais nobres e indispensáveis actividades humanas, na Igreja e na teologia autenticamente católica não é apenas do filosofar que brota a verdade de que se reclama. É, antes do mais, de uma Pessoa particularíssima: nada menos de Alguém que a Igreja acredita ser a personificação da divindade mesma: Jesus de Nazaré ou Jesus Cristo, a própria Palavra de Deus, o Verbo (ou Logos) feito Homem.
Convém, portanto, ter na devida conta o que é a Igreja quando nos debruçamos criticamente sobre ela imputando-lhe erros, independentemente da nossa pertença ou não a ela Parece-me lógico e legítimo que seja antes do mais a própria Igreja a definir-se. O Catecismo da Igreja Católica (CIC), expõe nos números 751 a 959 a doutrina sobre a sua própria identidade. Em primeiro lugar há que dizer que a Igreja foi “fundada pelas palavras e actos de Jesus Cristo” (CIC 778) e é constituída pelo largo conjunto de pessoas que se designa por “Povo de Deus”, no qual se entra “pela fé e pelo Baptismo” (CIC 804). Não podemos descurar que se trata de uma sociedade simultaneamente humana e divina, a qual sem a fé não é possível compreender na sua totalidade: “A Igreja é, ao mesmo tempo, visível e espiritual, sociedade hierárquica e Corpo Místico de Cristo. É una, mas formada por um duplo elemento: humano e divino. Aí reside o seu mistério, que só a fé pode acolher” (CIC 779).
A Igreja confessa quatro grandes atributos seus, que não podem ser devidamente compreendidos sem ter em conta o tal elemento divino. Diz o Credo de Niceia-Constantinopla (ano 381): “Creio … a Igreja una, santa católica e apostólica”. O CIC dá uma explicação sobre cada um destes atributos nos números 866 a 869.No seu número seguinte (870) o CIC cita uma relevante passagem do documento do Concílio Vaticano II que trata da “natureza e missão universal” da Igreja, onde se afirma: “A única Igreja de Cristo, da qual professamos no Credo que é una, santa, católica e apostólica, […] é na Igreja Católica que subsiste, governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos que estão em comunhão com ele, embora numerosos elementos de santificação e de verdade se encontrem fora das suas estruturas» (Lumen Gentium, 8). Muito mais se poderia referir sobre a identidade da Igreja, mas tenho de me limitar ao espaço disponível.
Outro aspecto fundamental a considerar, ignorado pelo autor, é que a religião Católica é uma religião revelada, ou seja, que acredita que “Deus revelou-Se plenamente enviando o seu próprio Filho, no qual estabeleceu a sua aliança para sempre. O Filho é a Palavra definitiva do Pai, de modo que, depois d’Ele, não haverá outra Revelação” (CIC 73).
Assim, a Igreja é portadora de verdades reveladas que constituem no seu conjunto aquilo a que se chama o “Depósito da fé” (depositum fidei), do qual não é a Autora nem a proprietária, mas apenas a única autorizada intérprete e transmissora, através de uma Tradição que se mantem viva desde Jesus Cristo, passando pelos Apóstolos e pelo conjunto de quantos lhes sucederam e sucedem legitimamente, até aos dias de hoje (cf. CIC 74-87).
De facto, a responsabilidade de interpretar de modo autêntico esse conjunto de verdades reveladas e veiculadas pela Sagrada Escritura e pela Tradição, foi “confiado só ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo, isto é, aos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, o bispo de Roma” (CIC 85). O âmbito coberto por esta responsabilidade ou encargo, abrange não só os temas relacionados com a doutrina da fé, mas também com a doutrina moral. Por outro lado, também devemos ter consciência de que nem o Papa nem os Bispos, individualmente ou em conjunto, são os donos do referido Depósito da fé: não podem fazer dele, de modo arbitrário, o que quiserem, em eventual cedência ao espírito do tempo ou do “politicamente correcto”.
E no que respeita à possível evolução ou desenvolvimento dos dogmas, ou seja, relativamente a doutrinas de fé definitiva e irreformável, há regras. Já um monge do século V, Vicente de Lérins, alertava: “Estas leis do progresso devem normalmente aplicar-se ao dogma cristão; [de modo] que ele seja consolidado pelos anos, desenvolvido pelo tempo, tornando-se mais sublime/venerável pela idade, mas que ele permaneça sem corrupção e incontaminado, que ele esteja completo e perfeito em todas as dimensões das suas partes e, por assim dizer, em todos os seus membros e em todos os sentidos que lhe são próprios, que ele não admita posteriormente, nenhuma alteração, nenhuma perda das suas características específicas, nenhuma variação no que ele tem de definido.” (Commonitorium, XXIII, 9. Tradução do francês-português minha, a partir daqui).
Muitos séculos depois, em 1845, coube a um convertido do anglicanismo ao catolicismo, John Henry Newman (1801-1890) – canonizado pelo Papa Francisco em 2019 – apenas um mês depois da sua conversão, debruçar-se novamente sobre esta questão do desenvolvimento do dogma cristão nos seus Essays on the Development of Christian Doctrine. Nesta sua obra magna, à semelhança de São Vicente de Lérins, desenvolve outros “critérios para distinguir entre desenvolvimentos de uma ideia que conservam a sua identidade e deformações ilegítimas dessa ideia”, como diz o teólogo M. Seewald (cf. Michael Seewald, O Dogma em Evolução, Lucerna, Novembro 2021, pp. 210-221). Portanto, cuidado com os entusiasmados desejos de supostas mudanças radicais e revolucionárias da doutrina ou da moral: na Igreja católica ele há regras para o autêntico “progresso” dos dogmas.
A leitura do artigo do Prof. Doutor Domingos Faria sobre “os erros da ética sexual da Igreja…”, também conduziu a minha memória para aquele que é um dos mais importantes documentos do magistério de João Paulo II. Refiro-me à encíclica Veritatis Splendor (VS; O Esplendor da Verdade), publicada em Agosto de 1993. Será que o autor a conhece? Que comentários lhe suscita toda a vastíssima argumentação de João Paulo II a favor da lei natural, da natureza corporal e espiritual do homem e do consequente significado e sentido dos seus actos morais, incluindo os que dizem respeito à sexualidade?
Nesta encíclica, “é a primeira vez que o Magistério da Igreja expõe os elementos fundamentais dessa doutrina [moral cristã] com uma certa amplitude […]” (n. 115). Não consigo resumi-la aqui; apenas prossigo com alguns apontamentos soltos. Principalmente no seu Capítulo II (nn. 28-83), o Papa reflecte detalhadamente sobre o que é a teologia moral católica; expõe os princípios necessários para o discernimento daquilo que é contrario à “sã doutrina”; disserta sobre o que é a liberdade e a sua relação com a verdade; qual é o papel da consciência; sobre o problema da exaltação absoluta da liberdade; fala do problema da ética individualista e da autonomia sem limites; do relativismo moral; recorda a obrigação moral de procurar a verdade e aderir a ela uma vez conhecida; desmascara o suposto conflito entre a liberdade e a lei de Deus; diz-nos que a liberdade humana absolutizada corresponderia a uma soberania absoluta; alerta para o problema de uma completa soberania da razão sem ter em conta o estado actual da natureza decaída do homem e afirma a participação do homem na soberania divina; acautela para um exagerado conceito da autonomia das realidades terrenas; reafirma que a lei natural é expressão humana da lei eterna de Deus; refuta as acusações de um suposto fisicismo e naturalismo do magistério eclesial; recorda a recta relação da liberdade e da natureza humana e o lugar que ocupa o corpo humano nas questões da lei natural; denuncia a separação do acto moral das dimensões corpóreas do seu exercício; explica o verdadeiro significado da lei natural e a necessidade da referência à pessoa na sua totalidade de corpo e alma, para que seja lido o significado especificamente humano do corpo; reafirma a universalidade e imutabilidade da lei natural, válida para todos e todas as culturas e épocas, pois a comum natureza do homem é algo que transcende as culturas; afirma e explica a incompatibilidade das teorias morais consequentalistas e proporcionalistas. E ao finalizar este Capítulo II da VS, João Paulo II confirma com vigor a doutrina tradicional da existência de actos sempre “intrinsecamente maus”, independentemente das intenções e circunstâncias.
Agora, no que respeita à pena de morte e à polémica que a nova redacção do número 2267 do Catecismo então gerou, ao mais alto nível, limito-me a remeter para um artigo que publiquei aqui (A Pena de Morte e o Papa: progresso ou rotura? – Observador) no Observador, a 18 de Agosto de 2018.
A moralidade dos actos humanos, segundo o pensamento da Igreja e ao contrario do que sugerem as considerações do Prof. Domingos Faria, não depende apenas do fim ou da intenção da pessoa que o pratica nem apenas das circunstânciasem que é realizada a acção, das quais fazem parte as consequências. Na avaliação da bondade ou malícia de um acto moral, o objecto escolhido, ou seja, aquilo que a vontade deliberadamente procura também tem que ser considerado. Efectivamente, conforme ensina o CIC, no número 1755,
“O acto moralmente bom pressupõe, em simultâneo, a bondade do objecto, da finalidade e das circunstâncias. Um fim mau corrompe a acção, mesmo que o seu objecto seja bom em si (como orar e jejuar «para ser visto pelos homens»).
O objecto da escolha pode, por si só, viciar todo um modo de agir. Há comportamentos concretos – como a fornicação – cuja escolha é sempre um erro, porque comporta uma desordem da vontade, isto é, um mal moral”.
E continua no número 1756, em jeito de conclusão:
“É, portanto, erróneo julgar a moralidade dos actos humanos tendo em conta apenas a intenção que os inspira, ou as circunstâncias (meio, pressão social, constrangimento ou necessidade de agir, etc.) que os enquadram. Há actos que, por si e em si mesmos, independentemente das circunstâncias e das intenções, são sempre gravemente ilícitos em razão do seu objecto; por exemplo, a blasfémia e o jurar falso, o homicídio e o adultério. Não é permitido fazer o mal para que dele resulte um bem”.
Na Veritatis Splendor (nn. 77-83), João Paulo II reafirma por inteiro o já anteriormente exposto no Catecismo sobre as fontes da moralidade, onde necessariamente se inclui a consideração do objecto deliberado ou da escolha e a consideração dos actos denominados “intrinsecamente maus” (nn. 80-81). De facto, se excluirmos como não válida a noção de natureza ou da lei natural para a elaboração da moral, os critérios de ponderação do bem e do mal ficam apenas dependentes de considerações meramente subjectivas e circunstanciais. É o que acontece de algum modo com as teorias alternativas – ditas “rivais” pelo autor. Mas o que distingue a nobreza e a unicidade do Homem no acto das suas escolhas e no uso da sua inalienável liberdade é não seguir cegamente os seus instintos e sentimentos. A vida animal, onde não há propriamente liberdade, é que se rege apenas por estes. Para um ser humano elevado (educado) na sua mente e exercitado no querer, a recta razão e a recta vontade, ainda que feridas, fazem o possível por controlar as paixões. É que a ética tem precedência sobre a estética e as emoções. Todos sabemos a que perversidades, perturbações e doenças pode chegar a fraqueza e a vulnerabilidade humana – como médico há mais de quarenta anos sei-o bem – quando se absolutiza a autonomia individual e se privilegia o critério do prazer, dissociando o significado e o sentido intrínsecos das realidades naturais. Temos bem perante o nosso olhar escandalizado os horrores dos casos de abuso de menores na Igreja e na sociedade em geral.
Finalizo citando o que ainda recentemente escreveu aqui (Going Beyond the Letter of the Law | Gerhard Ludwig Müller and Stephan Kampowski | First Things) o cardeal Gerhard Müller, prefeito emérito da Ex Congregação para a Doutrina da Fé, num longo comentário em que denuncia uma parte das actas, agora publicadas, de um encontro promovido pela renovada Pontifícia Academia para a Vida (PAV) em 2021. Nessas actas, a PAV, nas palavras do cardeal, efectivamente “propõe uma revolução da moral sexual católica”. Num comentário já próximo do final, escreve ele: “Há dois conceitos irreconciliáveis da pessoa humana e da sexualidade humana: a opção contraceptiva é uma escolha contra a virtuosa posse de si mesmo e o autodomínio. O conceito de pessoa humana que subjaz é o de um ser governado pelo instintos e os impulsos, livre como um tornado, uma força da natureza cuja passagem ao acto não pode ser controlada. Apenas se pode tomar medidas preventivas, aplicar expedientes técnicos, de modo a limitar possíveis danos. O conceito de sexualidade envolvido é o de uma força bruta, incapaz de ser integrada na ordem da razão – e com a ordem da liberdade e do amor. A ideia é a de que o máximo que a pessoa pode alcançar é a repressão do próprio impulso sexual, que depois pode emergir a qualquer momento como um vulcão, sendo a erupção tão mais violenta quanto mais se negou previamente ao impulso uma descarga” (tradução minha). Será este o conceito de pessoa e sexualidade que o Doutor Domingos Faria defende?