Ainda estamos na oitava da Páscoa – esse Domingo Maior. A sublime alegria da Páscoa de Cristo, antes do mais vivida pela noite dentro na Vigília Pascal, levou-me a reler mais uma vez, na tarde do Domingo de Páscoa, o que nos diz o Catecismo da Igreja Católica (CIC) a respeito da Ressurreição de Cristo, enquanto ouvia a gravação da oratória Messiah(Messias), de Georg Friedrich Haendel (1685-1759) – interpretada pela La Capella Reial de Catalunya e Le Concert des Nations, sob a direcção do inesquecível Jordi Savall, na Capela Real do Castelo de Versailles, em Dezembro de 2017.

A vivência da Liturgia, a audição da música e a leitura meditada da doutrina, são experiências todas elas de natureza e respeitabilidade obviamente diferente, mas todas elas são, a seu jeito, experiências da Beleza que passam por este mesmo corpo concreto e animado que somos e com o qual conheço, creio, adoro, espero, amo e louvo a Deus. Consta que o compositor terá comentado sobre esta sua obra-prima: “Tive a impressão de ver todo o Céu aberto diante de mim e o próprio Deus Todo-poderoso”. Ouvir o Messias à luz da fé católica, em ambiente orante, particularmente a segunda e terceira partes, pode de facto ajudar-nos a contemplar Cristo Vivo. Mas por hoje quero concentrar-me no que nos revela o CIC sobre a Sua ressurreição.

O Catecismo da Igreja Católica é uma dádiva das mais relevantes e preciosas do pontificado de João Paulo II, publicado 30 anos depois da abertura do Concílio Vaticano II (1962-1965). O valor doutrinal do texto deste catecismo deriva da autoridade apostólica do próprio Papa, ao declarar que ele “é uma exposição da fé da Igreja e da doutrina católica, testemunhadas ou iluminadas pela Sagrada Escritura, pela Tradição apostólica e pelo Magistério da Igreja. Vejo-o como um instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial e como uma norma segura para o ensino da fé” (Constituição Apostólica Fidei Depositum, 4).

A parte que se ocupa da doutrina sobre a Ressurreição de Cristo vai dos números 638 a 658 (apenas 7 páginas, incompletas). Não se pode considerar propriamente muito extensa, tendo em conta que a ressurreição “é a verdade culminante da nossa fé em Cristo, acreditada e vivida como verdade central pela primeira comunidade cristã, transmitida como fundamental pela Tradição, estabelecida pelos documentos do Novo Testamento, pregada como parte essencial do mistério pascal […]” (cf. nº 638). Sob o título da própria afirmação que consta do Símbolo dos Apóstolos – “Ao terceiro dia, ressuscitou dos mortos” – apresenta-se subdividida em três, com os seguintes subtítulos: I Acontecimento histórico e transcendente; II A ressurreição obra da Santíssima Trindade; e III Sentido e alcance salvífico da ressurreição.

A I parte é particularmente interessante pela força das afirmações e referências que alguns mais sensíveis ao progressismo teológico/ideológico, poderão desdenhar como historicistas. De facto, afirma logo na abertura: “O mistério da ressurreição de Cristo é um acontecimento real, com manifestações historicamente verificadas, como atesta o Novo Testamento” (nº 639). E logo em abono desta afirmação, cita São Paulo na sua I Carta aos Coríntios, escrita algures duas dezenas de anos depois da ressurreição e das aparições aos Apóstolos, na qual Paulo remete para testemunhos contemporâneos dos acontecimentos (cf. 1 Cor 15, 3-4).

Seguem-se depois referências a dois factos, sem os quais não teria sido possível atestar a ressurreição: 1) a constatação do túmulo vazio e 2) as múltiplas aparições de Jesus ressuscitado. Quanto ao primeiro reconhece que “não é, em si, uma prova directa. A ausência do corpo de Cristo do sepulcro poderia explicar-se doutro modo”. Na sua honestidade, os próprios evangelhos não se furtam até de explicar como surgiu a hipótese do roubo do cadáver (cf. Mt 28, 11-15). Mas o facto de se apresentar vazio às mulheres que primeiramente lá foram para terminar os procedimentos fúnebres, e depois a Pedro e João, é condição necessária para a verificação da ressurreição, como se afirma de seguida: “Apesar disso, o sepulcro vazio constitui, para todos, um sinal essencial. A descoberta do facto pelos discípulos foi o primeiro passo para o reconhecimento do facto da ressurreição” (cf. nº 640).

Um outro aspecto interessante que o CIC reconhece como relevante, é a verificação por Pedro e João do estado em que encontraram os panos que envolveram o cadáver de Jesus. Com efeito, lê-se no evangelho de João o seguinte: “Os dois [Pedro e João] corriam juntos, mas o outro discípulo [João] correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro. Inclinando-se, [João] viu os panos de linho por terra, mas não entrou. Então, chega também Simão Pedro, que o seguia e entrou no sepulcro; vê os panos de linho por terra e o sudário que cobrira a cabeça de Jesus. O sudário não estava com os panos de linho no chão, mas enrolado num lugar, à parte. Então, entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro [João]: e viu, e acreditou. Pois ainda não tinham compreendido que, conforme as Escrituras, Ele devia ressuscitar dos mortos” (Jo 20, 4-9).

Sobre este ponto, explica a Bíblia de Jerusalém (Edições Paulinas, São Paulo, Brasil, 3ª impressão, Outubro 1987) que “os discípulos não se encontravam ainda preparados para a revelação pascal” (cf. nota o); apesar de lhes ter sido prevenida por Jesus. Por sua vez, o comentário da Bíblia Sagrada (da Difusora Bíblica dos Franciscanos Capuchinhos, 4ª edição revista, de Agosto de 2002) interroga-se: “Porque começou a crer o discípulo? A explicação habitual é que um ladrão não deixaria ficar os panos, e muito menos em ordem. Porque é que o Evangelista atribui tanta importância à diferente posição dos panos? É que as ligaduras e o lençol estavam espalmados no chão da pedra tumular, ao paço que o lenço que o Senhor tivera em volta da cabeça não estava espalmado no chão, mas mantinha a forma da cabeça que envolvera. Ou seja, Jesus saíra, ressuscitado; ninguém o tinha desembrulhado” (p. 1769). O CIC segue esta linha interpretativa da reacção de João, depois deste entrar no sepulcro e observar o estado em que encontrou os panos no seu interior: “ele terá verificado, pelo estado em que ficou o sepulcro vazio que a ausência do corpo de Jesus não podia ter sido obra humana e que Jesus não tinha simplesmente regressado a uma vida terrena, como fora o caso de Lázaro” (cf. nº 640). E reitera mais à frente: “O sepulcro vazio e os lençóis deixados no chão significam, por si mesmos, que o corpo de Cristo escapou aos laços da morte e da corrupção, pelo poder de Deus” (nº 657).

Quanto às centenas de aparições, que se sucederam durante quarenta dias (até à Ascensão ao Céu), estão amplamente testemunhadas no Novo Testamento: a primeira pessoa a ver Jesus ressuscitado foi Maria Madalena (e ainda outras mulheres: uma Joana, Maria, mãe de Tiago e outra Salomé). Desvairadas, são estas santas mulheres que correm a contar o sucedido aos “Onze [apóstolos], bem como a todos os outros” (cf. Lc 24, 1-11). Ainda naquele primeiro Domingo, sucederia uma aparição a Simão Pedro (Lc 24, 33) e aos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35); e depois no cenáculo mais de uma vez, onde, ao oitavo dia, se mostra fisicamente a Tomé que lhe mete a mão na ferida do costado (Jo 20, 26-29). “Depois disso, Jesus manifestou-se novamente aos discípulos, nas margens do mar de Tiberíades” (Jo 21, 1-23), até ser elevado ao Céu. Mais tarde, escreveria São Paulo aos coríntios – de entre os quais alguns diziam “que não há ressurreição dos mortos” – recorrendo ao testemunho dos apóstolos a respeito de Cristo: “apareceu a Cefas, e depois aos Doze”. E como se não lhes bastasse o testemunho do núcleo apostólico, acrescenta: “Em seguida apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, a maioria dos quais ainda vive […]” (cf. 1 Cor 15, 5-6) – que é como quem diz que o seu testemunho poderia ser ainda corroborado por contemporâneos dos factos. E refere também uma outra aparição “a Tiago e, depois, a todos os apóstolos” (v. 7), para terminar com a referência à inusitada aparição que o próprio Jesus lhe fez, já depois da ascensão ao Céu, na estrada de Damasco: “em último lugar apareceu-me também a mim como um abortivo” (v. 8).

Contradizendo interpretações puramente espiritualistas da ressurreição de Cristo ou explicações meramente psicologistas e subjectivas das aparições, o Catecismo é peremptório ao afirmar que “perante estes testemunhos, é impossível interpretar a ressurreição de Cristo fora da ordem física e não a reconhecer como um facto histórico” (cf. nº 643); e que “Jesus Ressuscitado estabeleceu com os seus discípulos relações directas, através do contacto físico (cf. Lc 24, 39; Jo 20, 27) e da participação na refeição (cf. Lc 24, 30.41-43; Jo 21, 9.13-15). Desse modo, convida-os a reconhecer que não é um espírito (cf. Lc 24, 39), e sobretudo a verificar que o corpo ressuscitado, com o qual se lhes apresenta, é o mesmo que foi torturado e crucificado, pois traz ainda os vestígios da paixão (cf. Lc 24, 40; Jo 20, 20.27)” (cf. nº 645).

A fé dos crentes de todas as épocas “está fundada no testemunho de homens concretos, conhecidos dos cristãos”, a quem Jesus verdadeira e realmente apareceu; e não é produto de qualquer “exaltação mística”, como tão bem argumenta o CIC. “A hipótese, segundo a qual a ressurreição teria sido um «produto» da fé (ou da credulidade) dos Apóstolos, é inconsistente. Pelo contrário, a sua fé na ressurreição nasceu — sob a acção da graça divina da experiência directa da realidade de Jesus Ressuscitado” (cf. nn. 643-644).

E quanto ao estado do corpo ressuscitado de Cristo, reunido à sua alma, como é ele? Cristo “ressuscitou com o seu próprio corpo […]; mas não regressou a uma vida terrena” (cf. nº 999). Avança o CIC a seguinte explicação, remetendo em nota de rodapé para excertos dos evangelhos: “este corpo autêntico e real possui, ao mesmo tempo, as propriedades novas dum corpo glorioso: não está situado no espaço e no tempo, mas pode, livremente, tornar-se presente onde e quando quer (nota 568), porque a sua humanidade já não pode ser retida sobre a terra e já pertence exclusivamente ao domínio divino do Pai (nota 569). Também por este motivo, Jesus Ressuscitado é soberanamente livre de aparecer como quer: sob a aparência dum jardineiro (nota 570) ou «com um aspecto diferente» (Mc 16, 12) daquele que era familiar aos discípulos; e isso, precisamente, para lhes despertar a fé (nota 571)” (nº 645).

Aqui, com a questão da fé, entramos no aspecto propriamente transcendente deste acontecimento. Em parte alguma do Novo Testamento, se descreve o acontecimento da ressurreição em si, pois “ninguém foi testemunha ocular do acontecimento da ressurreição propriamente dita”. E “ninguém pôde dizer como ela se deu, fisicamente. Ainda menos a sua essência mais íntima, a passagem a uma outra vida, foi perceptível aos sentidos” (nº 647). Curiosamente diz o CIC, ao abordar mais à frente a questão do modo como se dará também a nossa própria ressurreição, que “este «como» ultrapassa a nossa imaginação e o nosso entendimento; só na fé se torna acessível” (nº 1000). Já o apóstolo São Paulo se questionou: “Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam?” (1 Cor 15, 35), para responder num notável trecho para cuja leitura atenta, deixo aqui a sugestão (vv 36-58). E assim é: tendo sido um acontecimento histórico, um facto situado no tempo e no espaço, necessariamente testemunhado pelo vazio do túmulo e por inúmeras aparições, elas mesmas testemunhadas por homens que se tornaram credíveis (pela volta que deram na vida, por tudo o que fizeram e como morreram), o fenómeno da ressurreição em si mesmo, transcende-nos pela sua própria supereminência, que só pode ser razoavelmente explicável pela ordem do divino. Está “no próprio centro do mistério de fé”. Por isso, requer a humilde condição de discípulo, que é a dos crentes. E por isso, diz o CIC, Cristo Ressuscitado não se manifestou a todo o mundo – como que em espectacular broadcast televisivo (cf. nº 647).

Ele não se impôs aos Apóstolos, nem a ninguém, ontem ou hoje, através de uma pura evidência esmagadora da liberdade humana! Já o grande cientista, matemático, filósofo e teólogo católico Blaise Pascal (1623-1662), comentou brilhantemente: “Não era justo que ele aparecesse de uma forma manifestamente divina e absolutamente capaz de convencer todos os homens. Mas também não era justo que ele viesse de uma forma tão oculta que não pudesse ser reconhecido por aqueles que sinceramente o procurariam. Ele quis tornar-se perfeitamente reconhecível por eles. E assim, querendo aparecer a descoberto para aqueles que o procuram de todo o coração, e escondido àqueles que dele fogem de todo o seu coração, ele moderou o seu conhecimento de tal forma que mostrou sinais visíveis de si mesmo àqueles que o procuraram; e não os mostrou àqueles que não o procuraram. Há luz suficiente para aqueles que só desejam ver; e escuridão suficiente para aqueles que têm uma disposição contrária” (Pensées: tradução minha).

Quanto à II parte, embora mais breve, não me deterei nela aqui para não me alongar. Afirma a modalidade da transcendente intervenção de cada uma das Pessoas divinas da Santíssima Trindade na ressurreição do próprio Jesus. Ou seja, de que modo agiram conjuntamente o Pai, o próprio Filho e o Espírito Santo neste acontecimento absolutamente inédito na história e que é também “o princípio da nossa própria ressurreição” (nº 658); e “primícias dos que adormeceram” (1 Cor 15, 20).

Finalmente, a III parte afirma e como que elenca o sentido e as consequências da ressurreição de Cristo. Como abertura cita a celebérrima afirmação de São Paulo aos coríntios: “Se Cristo não ressuscitou, então a nossa pregação é vã e também é vã [e ilusória] a vossa fé” (cf. 1 Cor 15,14.17), para depois afirmar sem rodeios: “A ressurreição constitui, antes de mais, a confirmação de tudo quanto Cristo em pessoa fez e ensinou. Todas as verdades, mesmo as mais inacessíveis ao espírito humano, encontram a sua justificação se, ressuscitando, Cristo deu a prova definitiva, que tinha prometido, da sua autoridade divina” (nº 651).

Qual é o alcance da ressurreição? O CIC sublinha cinco: 1) “é o cumprimento das promessas do Antigo Testamento e do próprio Jesus”; 2) “a verdade da divindade de Jesus é confirmada pela ressurreição”; 3) “abre-nos o acesso a uma nova vida”, eterna; 4) “realiza a adopção filial, porque os homens tornam-se irmãos de Cristo” filhos adoptivos de Deus Pai; 5) “finalmente, a ressurreição de Cristo – e o próprio Cristo Ressuscitado – é princípio e fonte da nossa ressurreição futura”(nn 652-655).

Num tempo como o nosso em que as imagens de morte e aniquilamento total da pavorosa e iníqua guerra de invasão da Ucrânia nos entram todos os dias em casa pelos olhos adentro e em que a morte anual de cerca de 73 milhões de seres humanos inocentes abortados no ventre das mães (OMS) já não é praticamente notícia de relevo nem motivo de escândalo público, é imperioso dar a conhecer esta boa notícia; e crer que a morte não é necessariamente e desesperantemente o final da linha da vida constitui uma sublime e serena alegria (ou laetitia). Santa Páscoa !

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