O Observador noticiou este mês mais uma medida distópica de uma longa lista de transgressões e violações da lei internacional por parte do Irão e, desta feita, pretende-se oferecer “tratamento” psiquiátrico a mulheres que se recusem a usar véu. Verdade seja dita, a instrumentalização da psiquiatria, e o seu uso como arma por parte do governo iraniano para suprimir a dissidência e a liberdade pessoal, já não são novas. O caso da estudante iraniana que se despiu em Teerão este mês, descrita pelas autoridades como “doente mental”, e da qual não se conhece o paradeiro, é um destes casos. No passado, um dos casos que também assumiu notoriedade foi o da hospitalização psiquiátrica forçada do rapper Saman Yasin, depois de este ter exigido um processo justo no seu caso. Apesar da oposição passada de numerosos órgãos psiquiátricos e de psicologia no Irão, que fizeram um parecer público contra estas violações, a situação continua a repetir-se flagrantemente perante o olhar internacional impassível.
Quando se fala destas transgressões imperdoáveis nas redes sociais ocidentais, é muito comum verem-se comentários que instigam o leitor a deixar estas coisas, simplesmente, acontecerem. “É o país deles, são os costumes deles, não temos que nos meter”. Contudo, enquanto psiquiatra e humanista, não consigo e não quero cingir-me ao meu canto do mundo. E a perversão da minha disciplina médica ao serviço de tudo aquilo que repudio é uma provação que não pretendo sofrer de boca fechada.
Engana-se muito quem pensa que o uso da psiquiatria para justificar e levar a cabo barbaridades se limita ao mundo islâmico. A contemptível Aktion T4, o programa de eutanásia altamente organizado da Alemanha Nazi, e que contou com a cooperação voluntária (e involuntária) de muitos médicos alemães, é a prova do que pode acontecer quando se abandona toda e qualquer preocupação com a moralidade e se eliminam todos aqueles que, de acordo com uma ideologia desnaturada, têm uma vida “indigna de ser vivida”. Ao abrigo deste programa selecionaram-se milhares de pessoas indesejadas com doenças hereditárias e psiquiátricas, como esquizofrenia e alcoolismo, para esterilizações compulsivas e extermínio. As crianças não eram poupadas. O extermínio de crianças com deficiências ocorreu a partir de 1939 e em várias localizações, uma delas o hospital psiquiátrico onde trabalho no Norte da Alemanha, onde se estima que cerca de 300 a 350 crianças perderam a vida. Sei disto porque o hospital tem um memorial dedicado às vítimas e trabalha na divulgação permanente do que se passou, e não se deve repetir, para evitar o esquecimento por parte da população.
É importante relembrar que estas coisas acontecem aos poucos e, numa Europa e num mundo que está a ver um crescimento preocupante de movimentos extremistas, é vital estar bem atento. Para todos aqueles que acham que esta é uma afirmação à “velho do Restelo”, vou dar-vos um exemplo de uma situação recente e de uma tentativa de instrumentalização da psiquiatria.
Corria o infame ano de 2020, em que o Covid-19 traumatizou o mundo, e eu estava a trabalhar no hospital psiquiátrico mencionado acima. Por esta altura, como se devem lembrar e um pouco por todo o mundo, havia rígidas medidas de quarentena para infectados por Covid-19. Por esta altura começaram também a surgir situações de desobediência civil a estas medidas, o que impôs a pergunta acerca do que fazer nestes casos. Ora, em reposta a esta problemática, determinados governos e autoridades oficiais com amnésia (e a prova viva de que memoriais acerca do Holocausto nunca são demais) e entre estes, de acordo com a imprensa, o governo do estado da Saxónia, começou a fazer preparações em hospitais psiquiátricos para alojar pessoas que não cumprissem uma ordem de quarentena, sendo que a polícia deveria assumir o controlo desta operação. Este plano na Saxónia foi cancelado por Michael Kretschmer da CDU. Em face a esta situação, que levantou indignação nos círculos psiquiátricos e a qual só posso descrever como vergonhosa, a DGPPN, Sociedade Alemã de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicossomática, emitiu um parecer que ainda pode ser encontrado na internet, o qual li com prazer e que condena inequivocamente a situação acima descrita. Aqui fica uma tradução livre:
“As pessoas que, sem serem doentes mentais, violam de livre vontade as ordens de quarentena, aceitando assim, consciente ou inconscientemente, o perigo para os seus semelhantes, não devem ser colocadas em clínicas psiquiátricas para fins disciplinares. As clínicas psiquiátricas não são instituições de ensino e não são um local para punir o mau comportamento de pessoas mentalmente saudáveis. O seu único objetivo é a prestação de cuidados regulares e foram financiadas e construídas para oferecer ajuda médica a pessoas com doenças mentais. Este serviço só está disponível para doentes mentais, com e sem infeção por Covid-19. A apropriação indevida de clínicas psiquiátricas para medidas coercivas do Estado é inaceitável na opinião da DGPPN. Traz-nos à memória os tempos de regime antidemocrático na Alemanha. Esta injustiça nunca mais se poderá repetir. Os governos estaduais são, por isso, incitados a ponderar cuidadosamente tais medidas e a manter-se atentos à sua proporcionalidade.”
Portanto, como espero que recontar esta situação torne ainda mais claro, quando falamos do papel deplorável que estão a fazer a medicina e a psiquiatria assumir no Irão, não estamos a falar de uma situação que está tão longe geograficamente e socialmente, que não nos diz respeito. Fala-se de uma realidade que, de forma insidiosa, se pode insinuar até no mundo ocidental democrático se não se mantiver os olhos abertos e um intelecto afiado. E como existem muitas pessoas que, infelizmente, só parecem prestar atenção quando a ameaça lhes bate à porta, espero que este relato inspire cautela e dissuada comentários simplistas. E para todos os profissionais da saúde mental, espero que reforce a nossa responsabilidade em proteger as liberdades essenciais, que são a base de qualquer psiquiatria que se preze.