Estamos a entrar num novo mundo em matéria de política económica, em que se quebram as regras e se dá lugar a decisões discricionárias. Quem conhece o debate económico sobre “regras versus discricionariedade”, e não se deixa turvar por qualquer tipo de fé ideológica, sabe que em situações de incerteza extrema, como aquela que caracteriza a crise do coronavírus, as regras que faziam sentido em tempos de normalidade deixam de produzir os melhores resultados para o bem estar dos cidadãos, o principal objectivo da política económica.

Um pouco por todos os países do ocidente, onde as regras de política económica são a regra, com especial relevo para a política monetária, vemos abrirem-se excepções. Inclusivamente na “ortodoxa” área do Euro e União Europeia, nestes dias tão criticada pela sua falta de capacidade de reagir a esta crise sem precedentes. Apesar de tudo e de todas as criticas que possam ser feitas, a União Europeia está a reagir melhor do que na crise das dívidas soberanas, de 2010-2011.

Entremos pelos factos, pelas decisões que já se conhecem, para ilustrar até que ponto os decisores políticos estão a ajustar-se a estes novos tempos de excepção.

Linhas de crédito garantidas pelo Estado ou subsídios a empresas fazem agora parte do quotidiano das comunicações da Comissão Europeia. Estão interrompidas as regras que impedem o Estado de ajudarem as empresas e que tantas dificuldades nos criaram na crise das dívidas soberanas. A política de concorrência da União Europeia, uma das poucas em que a Comissão Europeia tem poder quase absoluto, cede lugar ao pragmatismo. E este intervalo nas regras irá ainda mais longe, quando assistirmos, como já começa a acontecer, à capitalização de algumas empresas, designadamente no sector da aviação. O que pode ir desde companhias aéreas a aeroportos.

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Aliás, a comissária europeia para a Concorrência, Margrethe Vestager, em entrevista ao Financial Times vai ao ponto de defender que os Estados-membros devem tomar posições em empresas, para as defender de aquisições por parte de outros países, designadamente da China. Uma declaração impensável há três meses e que vai contra os princípios gerais da globalização.

As regras europeias para as finanças públicas foram flexibilizadas numa das primeiras propostas da Comissão Europeia para fazer frente aos impacto económicos do Covid-19. Isto permitirá que os Estados-membros deixem de cumprir os objectivos de redução estrutural do défice público, a que estavam obrigados, desde que garantam a sustentabilidade das finanças públicas. Mas mesmo esta condição pode ser apenas escrita, uma vez que, depois da destruição a que vamos assistir, boa parte da dívida pública terá forçosamente de desaparecer nos braços do BCE, se quisermos que o projecto europeu sobreviva. A Itália e a Espanha, a terceira e quarta maior economia do Euro, não terão condições para garantir a “sustentabilidade das finanças públicas” medida pela relação entre o rácio da dívida e o crescimento, mesmo com taxas de juro tão baixas como as que temos.

E é aqui que entramos em Frankfurt. O BCE, depois de uma partida em falso, com Christine Lagarde a dizer que não cabe ao BCE reduzir os “spreads” das taxas de juro da dívida pública, acabou por perceber que não estamos a viver tempos normais.  E o BCE anunciou que até ao fim de 2020 vai adquirir 750 mil milhões de euros de títulos de dívida no âmbito do programa de emergência de combate à pandemia.

E o governador do Banco de França quebrou um tabu ao admitir a possibilidade de o BCE apoiar directamente as empresas, imprimindo moeda. Uma forma de contornar a proibição de financiamento directo aos Estados, consagrada nos tratados. Mesmo esta regra, que impede que as máquinas de imprimir dinheiro sirvam para pagar despesa pública, tem vindo a ser ultrapassada desde que Mário Draghi disse, no início do Verão de 2012, que faria o que fosse necessário para salvar o euro. Não faltará muito até vermos o BCE ir ainda mais longe do que foi até agora, pagando despesa pública, embora, e obviamente, sempre a desmentir que o esteja a fazer.

Fora da área do euro não existem rodeios. O Banco de Inglaterra passou a ser o primeiro banco central no universo dos países desenvolvidos a fazer financiamento monetário da despesa pública, ao aceitar pagar despesa pública ao tesouro britânico, numa base temporária. Vamos ver o que ainda fará a Reserva Federal dos Estados Unidos.

Estamos a viver uma crise nunca antes vista e só comparável com o de uma economia de guerra, podendo os seus efeitos ser muito piores como se pode ler neste artigo de Sérgio Aníbal que tem como fonte o trabalho “Longer-Run Economic Consequences of Pandemics” da Reserva Federal de São Francisco.

A paragem das economias europeia e norte-americana em pelo menos dois meses assim como a incerteza geral e especialmente quanto aos danos económicos e comportamentais da pandemia exigem que os decisores políticos actuem em completa liberdade, para que adoptem as medidas que mais reduzem os custos da crise, que minimizam a perdade bem estar. Os problemas clássicos, como o de decisões que podem gerar incentivos perversos, não existem neste momento. Estamos a viver tempos anormais, em que todas as regras da normalidade desapareceram.

A Holanda, que tem protagonizado o papel de país rígido no quadro da União Europeia, vai ter de se adaptar, de mudar o discurso. É o nosso modo de vida que está em causa e a pandemia pode ter um poder destrutivo que vai para além da nossa imaginação, como para além da nossa imaginação já está a ser a vida que andamos a viver nestes tempos de quarentena. “Em tempo de guerra não se limpam armas”, diz-se em guerra. Pois em tempo de pandemia não se podem aplicar regras de política económica, a liberdade de decisão, a discricionariedade, tem de ser a única regra. Ou teremos, a seguir a estes dias de crise sanitária, países destruídos, pessoas destruídas. O que com certeza ninguém quer.