1 Nos tempos do Estado Novo, dei aulas de Ciência Política e Direito Constitucional, nos Institutos Superiores de Serviço Social, no Porto e em Lisboa, mantidos pela Igreja Católica. Ainda conservo essas lições, policopiadas em stencil. E entre algumas práticas pedagógicas que utilizava, uma se destacava pelo seu evidente êxito: era a de a certa altura do estudo do regime político perguntar aos meus alunos, em rigor quase só alunas, se um longínquo habitante de um país antípoda, estudando (sem nenhuma outra ajuda nem informação) a Constituição Portuguesa, que dizia que competia ao Presidente da República nomear e demitir livremente o Presidente do Conselho de Ministros, ficaria a saber que, exactamente ao contrário, era sempre o Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, quem de facto e durante décadas, como líder incontestado do partido único mas amplamente apoiado pela oligarquia, livremente escolhia e fazia eleger o Presidente da República.
2 Isto parecia-me então uma boa maneira de suscitar vivamente o problema, jurisdicional mas também político, do controlo do cumprimento da Constituição, e de pôr em causa a relação entre doutrinas e princípios jurídicos, por um lado, e práticas políticas, por outro lado, num país onde oficialmente se recusava a democracia liberal. Mas estava eu, então, bem longe de pensar que, numa futura Terceira República, sob uma Constituição Política inequivocamente liberal-democrática e social, havia de assistir a coisas análogas, isto é, a evidentes consensos de sectores partidários e oligárquicos unidos, acerca de soluções práticas políticas em perfeito contraste com a letra e o espírito da Constituição. Digo isto a propósito deste magno caso do aeroporto do Montijo.
3 Em todo este debate, não se tem recordado a doutrina constitucional, desde logo constante dos artigos 2.º e 6.º, sob a rubrica de «Princípios Fundamentais». O primeiro deles impõe ao Estado que tenha por objectivo «o aprofundamento da democracia participativa». O segundo deles impõe ao Estado que «na sua organização e funcionamento [respeite] os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização da Administração Pública».
Ora, tirando um mínimo de pudor que impediu quase todos os partidos de (em flagrante oportunismo político) aprovarem a revogação de uma lei que cumpre a Constituição (porque dá um justificado poder de participação aos municípios), no mais parece que não tem havido preocupação em enquadrar a resolução da questão do aeroporto na principiologia constitucional. Se um longínquo estudioso do texto constitucional português vigente, sem conhecer nada acerca da praxis da nossa actual República, fosse submetido à prova de, num exame de Direito Constitucional, resolver este problema legal-político do novo aeroporto — que agora se levantou com base na simples mas forte indignação do (pessoalmente interessado) ministro Pedro Nuno Santos — como é que ele o resolveria?
4 Toda a gente sabe que as melhores práticas, hoje defendidas em toda a parte como irrecusáveis, são no sentido da legítima participação decisiva das comunidades locais nas questões que directa e vitalmente as afectam, entre as quais avultam as questões do ambiente e da urbanística; e que isso impede um qualquer despotismo de Governo central, mesmo quando estão em causa grandes problemas económicos. Este princípio, da subsidiariedade do Estado e do respeito pelas autonomia das autarquias, é hoje uma efectiva reivindicação, comprovada em constantes manifestações das populações locais, por toda a parte. Entre nós, por exemplo, as vivas manifestações populares acerca da exploração do lítio ilustram bem esta aspiração de democracia participativa.
5 Acrescem coisas incríveis. Como é possível que, na vigência de uma lei que dá aos municípios um poder de veto em certas grandes obras públicas, como a da construção de um novo aeroporto, o Governo central se tenha permitido avançar com um projecto custoso e moroso sem obter a prévia concordância dos municípios? Os responsáveis da situação criada são exclusivamente os membros do Governo. Por muito menos do que isto, de má e ruinosa gestão, tais gestores seriam demitidos se fosse numa empresa privada.
6 Mas alguns grandes interesses económicos parece não quererem aqui censurar o Governo. E é evidente o lobby que não só faz mudar de opinião o líder do CDS, como não valoriza a alternativa do aeroporto em Alcochete, que pode ser construído por fases, custando uma primeira fase (equivalente ao aeroporto do Montijo) tanto ou pouco mais do que o aeroporto do Montijo — que, note-se bem, também não passa de uma primeira fase, porque a opção Montijo não é uma opção bastante na perspectiva estratégica.
7 Finalmente: se no tempo da política da austeridade era defensável uma solução temporária, agora, que oficialmente já não há austeridade, qual é o argumento contra a solução definitiva estratégica? Que, como já foi dito, pode ser construída por fases?
8 A dança dos partidos, entre aqueles tempos do Governo Sócrates e os tempos actuais, nesta questão do novo aeroporto, é um estrondoso exemplo de como, também na nossa política, os interesses, que mudam, dominam mais efectivamente do que os princípios constitucionais, que não mudam.
9 E agora, essa ideia de uma negociação entre o Governo e os municípios, para ver se estes “vendem” a sua anterior decisão por “contrapartidas” que o Governo central lhes oferece, para salvar a má gestão governamental e o erro político cometido, não faz lembrar a corrupção? Se é um inadmissível oportunismo mudar a lei, não é um inadmissível oportunismo mudar a decisão dos municípios?