1 Já não se pode discutir a questão da melhor localização do novo aeroporto? Partidariamente, parece que chegámos ao ponto em que, quem discordar do Governo, ou excede as suas competências ou é irresponsável. Porque  há um dogma: «o debate sobre a localização [do aeroporto] ficou encerrado em 2014/2015 com a opção do anterior governo [de Passos Coelho] pelo Montijo»; e, se for necessário, os partidos «[PS, PSD e CDS] deveriam aprovar as soluções legais que permitam o arranque de uma obra inadiável e de interesse nacional óbvio».

Muita razão tem o Presidente da República, com as implícitas, mas bem claras, recomendações de seriedade, endereçadas a Governantes e decisores oligárquicos, nas actuais circunstâncias da nossa vida política. Vejamos uma caricatura da encenação da questão do aeroporto.

2 Declarações do primeiro-ministro António Costa sobre a questão do novo aeroporto: « […] o debate sobre a localização [do aeroporto] ficou encerrado em 2014/2015 com a opção do anterior governo [de Passos Coelho] pelo Montijo. A opção foi tomada e cabe-nos agora [apenas?] agir responsavelmente e trabalhar com base nesta decisão». […] não é legítimo qualquer município poder bloquear uma obra de interesse nacional por razões que extravasam as competências próprias de um município».

3 Declarações de António Pires de Lima, ex-ministro da Economia: « […] De 2016 a 2019, curiosamente, o ministro Pedro Marques [do Governo de António Costa] pautou a sua atuação relativamente a tão relevante decisão pela quase completa inação. Tudo se passou como se a ampliação [do aeroporto] de Lisboa não fosse uma matéria urgente. E [agora] …devido a uma lei manifestamente absurda criada pelo governo de José Sócrates, está a ANAC obrigada a pedir parecer de conformidade vinculativa a todos os municípios afetados pela obra… […] Chegados a este ponto resta ao Governo, por sua responsabilidade, negociar sob pressão com as ditas autarquias. Mas na ausência de um acordo, os três partidos [PS, PSD e CDS] deveriam aprovar as soluções legais que permitam o arranque de uma obra inadiável e de interesse nacional óbvio. […]. Os interesses são legítimos, mas o dever dos políticos responsáveis é zelar pela solução mais racional.»

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

4 Declarações do ex-primeiro ministro José Sócrates: «Se a solução Montijo for adoptada ela será a única opção – repito, a única – que nunca teve um estudo de comparação com qualquer outra alternativa. A única. […] Eis ao que chegámos. […] Recordemos que a solução Alcochete tem o projeto aprovado desde 2010. Repito, desde 2010. Esse projeto está feito, tem avaliação ambiental estratégica aprovada, tem estudo de impacte ambiental realizado e tem também a respetiva avaliação ambiental aprovada com o parecer positivo das câmaras que a lei considera necessário à operacionalidade do empreendimento (a avaliação ambiental é válida até 2020). Isto é, a solução Alcochete tinha e tem todas as exigências ambientais cumpridas há muitos anos, enquanto a solução Montijo ou não as cumpriu (como a avaliação ambiental estratégica) ou não dispõe dos pareceres camarários positivos necessários à sua construção. Esta é a diferença. Se a questão fosse andar depressa, a solução Alcochete estava e está muitos anos à frente das outras.»

5 E José Sócrates continua: « … para comparar investimentos devemos comparar apenas o que é comparável – a solução Montijo deve ser comparada à primeira fase do projeto Alcochete (que funcionaria durante algum tempo como Alcochete mais Portela) e não ao projeto definitivo. Acontece que esta primeira fase tem custos de investimento análogos à solução do Montijo (baseio-me em artigos publicados pelo Eng. Matias Ramos que nunca foram contestados). Montijo não é, portanto, mais barato. O truque da argumentação consiste em comparar o custo deste aeroporto complementar com o custo previsto para todas as fases de Alcochete (numa altura em que Portela seria encerrado). É comparar aquilo que não é comparável.»

6 Ora bem. Estamos perante declarações públicas, muito actualizadas, de altos responsáveis da nossa Governação, todos muito bem informados sobre a questão em causa, que se contradizem de uma maneira chocante. É quase inacreditável! O que é que pode pensar o cidadão comum?

7 Interroguemo-nos. É sério que António Costa, hoje primeiro-ministro, nos diga que este Governo tem de cumprir a decisão do anterior [agora já penúltimo] Governo de Passos Coelho, acerca do novo aeroporto, depois de ter passado anos e anos a censurar e a desfazer asperamente todas as decisões desse Governo? E tendo o seu próprio anterior Governo deixado envelhecer o assunto do aeroporto, sem nada decidir na matéria, por anos seguidos?

E é admissível, a um primeiro-ministro, que conteste as competências que estão atribuídas por lei aos municípios, afirmando (sem provar) que «extravasam as competências próprias de um município»? Mas quem define as competências «próprias» dos municípios? O que é certo e seguro é que a Constituição obriga expressamente o Governo a (sic) respeitar a autonomia das autarquias (art. 6.º); e que a lei em vigor apenas cumpre a Constituição, precisamente atribuindo aos municípios o direito de veto a grandes decisões do poder central que possam afectar em grau elevado a qualidade de vida das respectivas populações. Como se atreve o primeiro-ministro a fazer declarações assim tão arrogantes? Não. Os nossos municípios não têm atribuições e competências excessivas. Pelo contrário, Portugal é um dos países mais centralistas entre as modernas democracias pluralistas. E, para cúmulo, a lei em causa é da responsabilidade política de um governo socialista em que António Costa participou como ministro. Questões acerca do ambiente e do urbanismo locais são por toda a parte da competência das autarquias, porque assim são resolvidas mais proximamente dos cidadãos que vão viver nas consequências dessas decisões. Não: a questão da localização do novo aeroporto pode e deve ser bem resolvida respeitando as competências constitucionais e legais dos municípios.

8 Por sua vez, António Pires de Lima diz que «os interesses são legítimos, mas [sublinhe-se este mas] o dever dos políticos responsáveis é zelar pela solução mais racional.» Mas quem disse que os interesses que ele admite serem legítimos não são os mais racionais? E se os políticos são responsáveis, são responsáveis em que termos? Individualmente, eles estão eleitoralmente sujeitos ao jogo das cadeiras, já se sabe. Mas, enquanto oligarquia, não são praticamente responsáveis; porque a simples responsabilidade «política» não os impede de serem reeleitos (colectivamente quase sempre os mesmos, ou da mesma família), apesar da elevada taxa da abstenção eleitoral. Há uma certa diferença entre serem (em princípio) responsáveis e serem (de facto) responsabilizados.

9 E quem contesta o que de forma veemente expõe o ex-primeiro-ministro José Sócrates, que também faz/fez parte da nossa oligarquia governante? Que lhe responde António Costa? E Pires de Lima? Nada? José Sócrates tem sido suspeitado de ter tomado decisões políticas de mistura com negócios. Mas se há coisa claríssima é que, agora, o lóbi do Montijo quase só argumenta com a economia dos negócios, e como se não houvesse (e não tivesse sempre havido) alternativa.

10 Finalmente, acerca da competência dos municípios, quem os defende, nesta circunstância? Não merecem ser defendidos porque são do PCP e discordam do Governo? É assim que se respeita a divisão de poderes e garante a autonomia dos municípios, uma e outra bem claras na nossa Constituição? É deste modo que se defende a democracia participativa, que a Constituição recomenda expressamente, como princípio, logo no seu art. 2.º? O CDS e o PSD não ligam nada a estas questões de doutrina democrática constitucional? Também só argumentam com negócios? Ou com negociações, o que vem a dar no mesmo?

11 Se é assim, então estaremos no limiar de políticas que já não são genuinamente democráticas e participadas. A caminho de uma crise política e partidária, essa sim, irresponsável? Valha-nos o Presidente da República.