Em 1936, no contexto da guerra civil espanhola e na época em que as forças nacionalistas se aproximavam, em quatro colunas, de Madrid, tentando apertar a cidade numa tenaz, houve quem falasse numa quinta coluna. Segundo alguns o criador dessa expressão teria sido o general Emilio Mola, outros atribuem-na ao seu camarada Queipo de Llano (numa conversa com Franco) ou ao também general nacionalista José Enrique Varela. Fosse quem fosse que a tivesse inventado, o sentido da expressão era claro. Qualquer dos generais em causa confiava no poder das quatro colunas militares que avançavam sobre a capital de Espanha, mas confiava também, ou ainda mais, numa quinta coluna que estaria já em Madrid e que seria formada pelos simpatizantes de Franco e dos outros nacionalistas, e cuja acção (ou inacção) iria — supunham — ajudar os atacantes.
A expressão ficou para designar quem no interior de um país actua a favor de um inimigo, tanto em estado de guerra como de pré-guerra, e eu tenho-me lembrado dela ao ler e ouvir aquilo que os jornais, as televisões e as redes sociais, me têm mostrado sobre a reacção de alguns dos meus concidadãos à aterradora e ilegalíssima invasão russa da Ucrânia. É claro que usar a expressão quinta coluna para definir esse conjunto de concidadãos pode ser desadequado. Portugal não está sob ameaça iminente ou sob cerco e se viesse a estar, estou certo de que a generalidade dessas pessoas não trairia o país para alinhar com o inimigo. Ainda assim, e feita essa ressalva, a expressão é útil por ser sugestiva e por nos permitir tomar consciência de coisas que sentíamos apenas vagamente sem saber situá-las. Útil, também, por um segundo motivo: é que há uma guerra em curso ainda que neste momento, para nós, que estamos felizmente na retaguarda, ela se trave apenas no plano das ideias (incluindo as económicas). E nesse plano, há, de facto, uma quinta coluna em Portugal que opera consciente ou inconscientemente, por acção ou omissão, a favor do expansionismo russo.
Essa quinta coluna é constituída por muitos simpatizantes ou tolerantes de Putin, e por inimigos de Zelenski — essas duas coisas costumam ir a par —, e por gente que fala muito em paz, mas para quem essa paz se obteria através de cedências ucranianas (territórios, etc.), e não pela óbvia, imprescindível e incontornável retirada das botas russas de um chão que não é seu. Ou seja, a quinta coluna advoga uma paz que beneficia o infractor, e culpabiliza os países ocidentais que, não alinhando nesse cenário, fornecem armamento a quem foi atacado e invadido, para que possa defender-se. Dito de outra forma, a quinta coluna aponta todos os dedos de todas as suas mãos a Joe Biden, a Boris Johnson, a Ursula von der Leyen e outras personalidades ocidentais — e a Zelenski, claro —, mas não vira a mínima falangeta que seja em direcção a Putin.
Esse é talvez o melhor critério para distinguir a quinta coluna dos apaziguadores, isto é, das pessoas que defendem a neutralidade e equidistância, e consideram (erradamente, a meu ver) que é possível e desejável aplacar a Rússia, fazer-lhe a vontade, dar-lhe algo a ganhar, não porque ela tenha razão, mas porque tem armas nucleares. Trata-se de uma concepção perigosa, auto-debilitante, que, de degrau em degrau, de apaziguamento em apaziguamento, encorajaria o actual governo russo a apoiar-se repetida e sucessivamente na ameaça do nuclear — como, aliás, já vem fazendo — para estender os seus métodos agressivos a outras regiões. Ou seja, os apaziguadores estão errados, mas importa reconhecer que não são putinistas nem pró-russos. A quinta coluna é-o, de forma expressa, manifesta, ou, então, por omissão ou defeito.
Em Portugal essa quinta coluna agrega pessoas de esquerda e de direita: Na sua vertente esquerda encontramos comunistas e aparentados que acalentam uma velha ligação afectiva e política com a Rússia e manifestam grande embaraço ou dificuldade em condená-la. Por isso, optam frequentemente pelo silêncio ou por causticar Kiev e o Ocidente, mas não Moscovo. Há tempos, Manuel João Ramos escreveu um artigo sobre as violências e perversidades dos ucranianos — que existem e de que o Observador já deu notícia ilustrada — e cometeu a triste proeza de não dizer uma só palavra, ou de esboçar uma avaliação ou juízo ético, acerca dos agressores russos. Na vertente direita encontramos geralmente nacionalistas, gente tendencialmente adversa da União Europeia e que tem uma admiração mais ou menos explícita por líderes autoritários e populistas: Trump, Le Pen, Salvini, Órban e, claro, Putin. Estas pessoas rejubilam com os sucessos russos — prognosticavam, aliás, uma fácil e rápida vitória russa quando esta guerra começou — e tentam assustar-nos e desmotivar-nos, a nós, os apoiantes da Ucrânia, com as dificuldades que nos esperam. Em conformidade, agitam frequentemente o espectro do terrível inverno que se aproxima, da crise económica que nos arruinará, do holocausto nuclear que chegará por culpa de quem “provocou” Moscovo.
Estes últimos oito meses estabeleceram o padrão de comportamentos da quinta coluna. É gente que se cala perante as muitas atrocidades russas — e quem cala consente —, que lê, aceita e divulga a propaganda russa e torce o nariz ou rejeita as notícias que circulam e se difundem nos meios de comunicação ocidentais. Gente que tem como principal argumento a alegação de que há causas importantes e distantes para esta acção agressiva russa, apontando, em particular, o período de 2014 e a revolução da Maidan, com o subsequente derrube de Yanukovitch, o presidente pró-russo. Para a quinta coluna a grande causa da actual guerra seria, portanto, atribuível não aos russos — pobres vítimas das circunstâncias e de provocações —, mas aos próprios ucranianos e seus aliados.
Isto fará sentido, de um ponto de vista histórico, ou servirá apenas para baralhar os espíritos e complicar o que é simples? Nesta rede de interacções que é a história, as causas, como disse o grande historiador Paul Veyne, são tudo o que está antes de um acontecimento e os historiadores podem sempre fazer recuar a causalidade histórica até onde o seu talento e os documentos lhes permitam ir e voltar com um raciocínio documentado, sólido e bem construído. Em teoria, e se houvesse provas, poderiam retroceder a ponto de ir pescar a primeira causa, a primeira responsabilidade, ao casal primordial, a Adão e Eva, e de certa forma isso é feito, no âmbito do Cristianismo, com o conceito de pecado original.
Para a quinta coluna também há um pecado original nesta guerra, mas, ao contrário do que os olhos da objectividade viram e vêem, esse pecado não foi praticado em Moscovo, mas sim em Washington. A gente da quinta coluna jura que anda nisto a invisible hand da NATO e dos americanos. A Ucrânia seria apenas o tabuleiro num mortífero jogo de xadrês entre russos e americanos, e jogado, por vontade destes últimos, até ao KO do adversário. Trata-se de uma teoria largamente indocumentada. Um exemplo, entre mil: Carmo Afonso, colunista do jornal Público, refere num recente texto àcerca da guerra na Ucrânia, que dois membros da Rand Corporation terão afirmado que os Estados Unidos deviam continuar a apoiar os ucranianos até eles alcançarem uma vitória total. Depois, Carmo Afonso informa que foi num dos estrategas dessa Rand Corporation que Stanley Kubrick se inspirou para a personagem de Dr. Strangelove, no seu filme de 1964 contra o belicismo paranoico e no qual um general norte-americano desencadeia um ataque nuclear contra a Rússia. Garante, também, que a Rand “dita e acompanha a geoestratégia dos Estados Unidos desde o final da II Guerra Mundial.” Ora — conclui —, “se a Rand vem a público apontar como objectivo uma vitória total na Ucrânia, ficamos a saber que é essa a orientação que está a ser seguida.” Ou seja, um raciocínio construído de alto a baixo na base da sugestão e da inferência. Carmo Afonso não fornece uma só prova, não refere um único documento ao seu leitor. Apenas conjecturas, insinuações e sétima arte. Eu também gosto de Dr. Strangelove, mas esse filme não prova coisa nenhuma acerca da vertente militar da política externa norte-americana, muito menos nesta situação concreta do ataque russo à Ucrânia. E as opiniões de dois senhores da Rand Corporation também não.
A NATO tem certamente interesses e uma estratégia política, mas fazer dela a alma danada do que está a acontecer na Ucrânia, e responsabilizá-la por aquilo que foi e continua a ser uma agressão russa, é do domínio do delírio conspiratório. A ideia de que a causa eficiente da agressão russa é a política dos Estados Unidos é apenas um artigo de fé e uma convicção deduzida de uma teoria geral do imperialismo e do expansionismo norte-americanos. Ora, a dedução pode ser óptima nas investigações de Sherlock Holmes, mas é desaconselhada como método único para historiadores. A história não se faz apenas com deduções, faz-se, sobretudo, com documentos. Onde estão os que incriminam ou responsabilizam directamente os norte-americanos? Não existem ou, se existem, não são do conhecimento público. As provas que temos à frente do nosso nariz são as de que a partir de finais do passado mês de Fevereiro os russos fizeram deslocar tropas suas para o interior de um país vizinho, com o inacreditável argumento de que se sentiam ameaçados e de que era preciso desnazificá-lo, e começaram a bombardear, a destruir e a conquistar as suas cidades e vilas, e a matar civis e militares ucranianos. Esses são os factos documentados, o resto são fantasias e conjecturas.
A guerra dura há oito meses e põe-nos quotidianamente perante um cortejo de horrores, de cínica falsidade, de chantagens, de desgraça humana. Nestes oito meses temos lidado com muita mentira e com algumas verdades, uma das quais, que a NATO identificou muito bem, é essencial: a Rússia de Putin é um inimigo e uma ameaça não apenas para a Ucrânia e países próximos das suas fronteiras ocidentais (Moldávia, Polónia, Lituânia, etc.), mas também para o resto do Ocidente. Há que estar atento a toda e qualquer movimentação da Rússia e estar pronto para defender cada metro do espaço da aliança NATO. Mas nestas coisas é bom olhar, também, para a nossa própria sala de estar para não perder de vista a quinta coluna que vive entre nós, e que, apesar de ser formada, em muitos casos, por excelentes pessoas, faz, talvez sem se dar conta disso, o jogo do inimigo e é a sua caixa de ressonância. É bom seguir muito atentamente o que dizem os seus membros, não para advogar ou promover uma caça às bruxas — como se fazia em Madrid, na segunda metade dos anos 30 —, mas para contraditar os seus argumentos, porque, volto a dizê-lo, na rectaguarda, onde felizmente nos situamos, esta guerra combate-se sobretudo no plano ideológico e da informação, e no da tenacidade, espírito de sacrifício e vontade de resistir.