N’A Morgadinha dos Canaviais, cuja ação decorre no final da década de sessenta do século XIX numas aldeias do Minho, Júlio Dinis descreve, como pano de fundo do enredo principal, um processo eleitoral em que a angariação dos votos das “potências eleitorais” da terra tem todos os ingredientes do “caciquismo” (palavra utilizada pelo autor): “para este o emprego de um afilhado, àquele o bom êxito de uma demanda, a outro o pagamento de uma dívida, ou o resgate de uma hipoteca, e a alguns até nua e descaradamente o dinheiro.”
As “potências eleitorais” são aqueles eleitores que valem vários votos, como o Joãozinho das Perdizes, um morgado que surge no dia das eleições a conduzir os eleitores da sua freguesia ao local de voto – a igreja matriz – como se de um rebanho se tratasse. Cada um deles traz no bolso o respetivo boletim, já preenchido pelo Joãozinho. Mesmo que soubessem ler, não conheceriam os nomes escritos no boletim nem saberiam o significado do que estavam a fazer. O morgado vale tantos votos quantos os eleitores da sua freguesia.
“Tendes visto um guardador de cabras à frente do seu rebanho, conduzindo com acenos e assobios todas as barbudas cabeças daquele regimento quadrúpede? Pois vistes o mais perfeito simile da cena que se presenciava agora no adro da igreja matriz. O povo, o povo soberano, que naquele dia tinha nas mãos o cetro da sua soberania, não era menos dócil do que os irracionais que recordámos.”
Júlio Dinis lamenta-se de que o povo, ao qual quarenta anos antes tinha sido atribuído o poder de escolher os seus representantes – a “nobre regalia”, como lhe chama –, não compreenda ainda “a grandeza da augusta missão que lhe cabe executar”. “Depois das nossas lutas civis [entre liberais e miguelistas], já muitas crianças se fizeram homens; se a escola fosse entre nós o que devia ser, já haveria sobra de eleitores com perfeita consciência dos seus direitos civis.”
O que mudou em cento e cinquenta anos, até agora?
O “povo” já sabe ler, em princípio, e não traz no bolso o boletim de voto previamente preenchido, não obstante ter este processo sido utilizado pelas máfias do sul de Itália até há poucos anos para comprar votos, fazendo com que o eleitor levasse no bolso um boletim previamente preenchido, que aquele depositava na urna, saindo depois do local de voto com o boletim em branco que tinha sido entregue pela mesa, o qual seria então entregue ao mafioso de serviço, que o preenchia e passava ao eleitor seguinte, repetindo-se o processo até ao último dos eleitores “comprados”, técnica esta que caiu em desuso com a disseminação dos smartphones com câmara, que passaram a permitir ao eleitor fotografar o boletim com a cruz no quadrado devido, tornando assim mais simples o processo de comprovar o sentido de voto e receber o respetivo pagamento, método eficaz para as máfias a menos que o eleitor rasurasse o boletim depois de o fotografar, anulando o voto, algo que não se vê que tivesse grande interesse em fazer.
E a consciência da “grandeza da augusta missão”? Será que o “povo”, em quem reside a soberania, segundo o artigo 3.º da atual Constituição portuguesa, assume que votar, mais do que um direito, é uma responsabilidade?
Não me parece.
A democracia, sendo o menos mau dos sistemas já inventados, tem inúmeros defeitos. Desde logo, porque funciona sob a regra da maioria, uma vez que não há votos qualificados e o consenso é impossível numa sociedade moderna com um grande número de eleitores. Mas a regra da maioria significa apenas que, depois de qualquer escolha, há apenas um maior número de satisfeitos do que de insatisfeitos. Para além disso, a maioria pode tomar péssimas decisões. Nem todas as coisas boas são populares. Algumas coisas boas não são populares. Muitas coisas que são populares não são boas.
Em segundo lugar, com a exceção de uma pequena bolha politizada, os eleitores conhecem mal ou o sistema político. Neste ponto, como no seguinte, baseio-me na minha experiência pessoal, até porque não conheço dados estatísticos. Mas desconfio de que, se submetêssemos os eleitores a um pequeno teste de conhecimentos sobre a organização do poder político em Portugal, os resultados seriam desastrosos. Quantos eleitores saberão que nas próximas eleições legislativas não estarão a votar diretamente num futuro primeiro-ministro, mas sim na composição de um órgão legislativo? Devo confessar que, muito mais do que a abstenção, me preocupa a ignorância de quem vota.
Finalmente, os eleitores não estão em regra preocupados com questões estratégicas ou visões de longo prazo. Estão preocupados com o dia seguinte. A última preocupação de um pensionista é com a sustentabilidade do sistema de segurança social; pelo contrário, o que o preocupa é saber quanto vai receber no final do mês. Quanto mais pobre e dependente do Estado for um país, mais facilmente os egoísmos dos eleitores são exploráveis.
Daí a atual pré-campanha eleitoral parecer, mais ainda do que as outras, uma feira – ou um “leilão”, como bem referiu o deputado Bernardo Blanco –, em que partidos competem entre si para ver quem dá mais, independentemente de o que se promete poder ser socialmente injusto e desastroso a prazo. Recorde-se que Sócrates aumentou os salários dos funcionários públicos para ganhar a maioria absoluta em 2005 e cortou os salários dos mesmos funcionários menos de um ano depois, ainda antes da intervenção da Troika. (Sim, foi ainda Sócrates a cortar salários.)
Os alvos ideais do “leilão” são os pensionistas do regime geral da Segurança Social com pensões inferiores ao salário mínimo nacional (1,7 milhões), os funcionários públicos em geral (746 mil, contra 656 mil no ano anterior à primeira “geringonça”), os beneficiários do RSI (263 mil) e, ainda, os trabalhadores por conta de outrem que recebem o salário mínimo (26%, contra 4% em 2001). A parte do salário mínimo é particularmente perversa, uma vez que – apesar de ser pago pelas empresas – o respetivo valor é definido por decreto do Governo, sendo fácil prometer um aumento para ganhar votos, como fez Costa há dois anos e faz agora Pedro Nuno Santos. No entanto, quando um Governo define um valor para o salário mínimo, deveria assumir implicitamente que, se uma empresa não o conseguir pagar, terá de fechar portas ou tornar-se mais eficiente (eventualmente despedindo trabalhadores). Mas Costa, pelo contrário, prometeu aumentar o salário mínimo para ganhar as últimas eleições, e depois colocou os contribuintes a pagar às empresas para as “compensar” por esse encargo adicional, subsidiando assim empresas privadas ineficientes, algo proibido, como regra geral, pelos Tratados da União.
O problema da “feira” não está no povo, que, por causa da pobreza e da dependência do Estado, reage racionalmente ao que lhe é apresentado. A responsabilidade está nos partidos que maquiavelicamente promovem e exploram essa dependência.