Já regressado à casa sacerdotal onde vive habitualmente, fui cumprimentar o Cónego Jeremias e saber a sua opinião sobre alguns temas da actualidade eclesial.

– Como sabe, Senhor Cónego, no passado dia 17 de Julho foram reveladas várias denúncias de vítimas do Abbé Pierre, em relação a factos ocorridos entre 1970 e 2005.

– Sim, soube desse comunicado, que causou uma enorme consternação em toda a França, sobretudo nos ambientes mais ligados à Igreja, em que a figura do Abbé Pierre e a sua obra a favor dos mais desfavorecidos era muito respeitada. Apurou-se que abusou de mulheres, raparigas jovens e até menores que colaboravam na organização.

– Em que medida este escândalo afectou a obra do Abbé Pierre?

–  A Fundação Abbé Pierre decidiu mudar de nome, eliminando a referência ao fundador. Por sua vez, o conselho de administração de Emaús França também vai retirar a referência ao Abbé Pierre como seu fundador, que vai igualmente desaparecer do logotipo da organização. Também se decidiu fechar definitivamente o memorial do Abbé Pierre, em Esteville. Por sua vez, Christophe Robert, administrador delegado da Fundação, manifestou a sua ira e pesar, agradecendo às vítimas a coragem da denúncia.

– Como reagiu o episcopado francês?

– Com muita tristeza, como era de esperar, mas também com grande determinação, como se impõe desde que na Igreja está em vigor a tolerância zero para os casos de abusos. A Conferência Episcopal Francesa considerou tratar-se de “um caso extremamente grave” e expressou a “sua consternação ante estas novas revelações e, sobretudo, a sua profunda compaixão para com as vítimas”. 

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– Infelizmente, não é um caso único, pois algo semelhante aconteceu também com o fundador dos Legionários de Cristo.

– Com efeito, o mexicano Padre Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo e do movimento Regnum Christi, segundo relatório divulgado pela própria instituição a 21-9-2019, abusou sexualmente de mais de meia centena de menores. Em Janeiro de 2005, uma comissão episcopal tinha confirmado a “conduta gravíssima e objectivamente imoral” do Padre Marcial, que foi afastado das instituições por ele fundadas e obrigado a uma vida de recolhimento, penitência e oração. Tendo em conta os seus 85 anos e frágil saúde – morreu pouco depois – a então Congregação para a Doutrina da Fé não o demitiu do estado clerical, nem o excomungou. 

– A propósito, que me diz sobre o Padre Marko Rupnik?

– É também um caso muito triste. Embora tenha sido merecidamente expulso da instituição religiosa a que pertencia, tem beneficiado de uma escandalosa impunidade: no Anuário Pontifício deste ano ainda consta, na pág. 1346, como consultor do Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos!

– E que me diz em relação à sua obra?

– Há uma certa independência entre a obra e a vida moral do seu autor. É óbvio que, se amanhã se descobrir que Miguel Ângelo tinha uma amante, não faria sentido ocultar os frescos da Capela Sixtina, ou retirar a Pietà. Se fosse preciso ser-se santo para se ser aceite como artista, só se salvariam as obras de Fra Angélico, que já foi beatificado! 

– Então as obras de arte devem ser apreciadas só em função da sua beleza?

– Também não, mas deve-se proceder com bom senso. Os talibãs, como outros fundamentalistas, destroem todas as obras de arte que não se identificam com a sua religião, mas a Igreja sempre valorizou as obras de arte pagãs: não foi por acaso que os Papas conservaram o panteão romano, símbolo máximo do paganismo romano, que converteram numa igreja cristã, bem como a Vénus capitolina, que, por ser a estátua de um nu feminino, poderia parecer escandalosa. Repare que não só a não destruíram ou ocultaram, como também a não vestiram … 

– E em relação ao caso concreto do Padre Rupnik?

– Como sabe, são já muitas as entidades católicas que se pronunciaram pela retirada das obras de Rupnik, como também não faltaram as instituições religiosas que admitiram vir a fazê-lo, ou que já prescindiram da sua colaboração artística. Não são fundamentalistas, nem muito menos talibãs, mas as dioceses de Roma – que tem o Papa por Bispo! – Versalhes e Madrid, o Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, os Cavaleiros de Colombo, etc.

– Também cá se deviam retirar, ou ocultar, os mosaicos do Padre Rupnik?

– Nunca o escrevi, nem disse, mas a arte sacra não só deve representar temas religiosos, como suscitar devoção. Por isso, expor publicamente, num espaço sagrado e como objecto de culto, obras de um conhecido abusador, pode ser ofensivo para as vítimas.  Admito que se mantenham, mas compreendo que, para quem foi abusado, possa ser difícil, senão mesmo doloroso, rezar diante dessa obra. 

– Mas essa atitude censória não lhe parece extremista?

– Note que é uma questão muito sensível: a ferida pelos abusos na Igreja é muito recente e há ainda muitas vítimas, cuja dor não pode ser ignorada. A hierarquia deve estar do lado das vítimas e, nesse sentido, seria razoável que essas obras não estivessem expostas em lugares de culto. Pergunto-lhe: seria aceitável receber um judeu, cuja família tivesse sido exterminada num campo de concentração nazi, num local onde estivesse um quadro pintado por Hitler que, como sabe, era um falhado artista plástico?!

– Mas a Igreja condenou os que diziam que um sacramento, administrado por um ministro indigno, não é válido…

– Nesse caso, o ministro é um mero instrumento, pois os sacramentos são eficazes ex opere operato, ou seja, pela própria obra realizada. Mas um quadro, uma música, um poema, ou uma escultura não estão ao mesmo nível. Nestes casos, o artista, mesmo que seja padre, não actua enquanto tal: a sua obra não tem eficácia sacramental, mas, se inspirar devoção, pode ser edificante. 

– Que preconiza, então, em relação ao Santuário da Santíssima Trindade, em Fátima?

– Tendo em conta que não há vítimas de Rupnik no nosso país, onde também o caso não é muito conhecido, não me parece que seja necessário fazer seja o que for, mas a decisão, como é óbvio, corresponde ao Bispo de Leiria-Fátima e ao Reitor do Santuário, que certamente saberão fazer o que for mais oportuno, tendo em conta não apenas a questão artística, ou a opinião pública, que são de somenos importância, mas sobretudo a glória de Deus, o bem da Igreja e das almas, em especial das vítimas. Tenho a certeza de que Fátima continuará a ser, como sempre foi, uma casa de braços abertos a todos, sobretudo os que mais carecem do consolo maternal da Senhora mais brilhante do que o Sol.