Em Agosto, um açoriano caminha para casa. É o cumprimento daqueles magníficos versos de Ruy Belo, com mais algum rigor espácio-temporal: “Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar / Caminha para o mar pelo Verão”. É um tempo de reencontro, de recomeço… e de um tipo se lembrar que é dono de duas companhias aéreas. Ou três.

Sim. Em princípio, você também é. Não estamos aqui entre pessoas quaisquer, não senhor; isto é conversa entre empresários da aviação, dois Howard Hughes da ocidental praia lusitana. Não se impressione com o descapotável do seu amigo, nem com o cargo de CEO-C-3PO Founder Specialist Strategist Little Buddha Analyst do seu cunhado. Eu e você somos doutro gabarito: donos da TAP, da SATA e da Azorean Airlines.

Eu sei. Uma pessoa em Portugal tem tanta coisa que até se esquece – televisões, bancos, companhias de transportes, distribuidoras de papel – mas garanto-lhe: tente comprar uma viagenzinha sentimental, dentro do nosso território e a bordo de um dos nossos aviões, e rapidamente tudo voltará à memória. Funciona assim: você tenta comprar um bilhete entre, por exemplo, Lisboa e a Ilha Terceira ou o Porto e São Miguel, pedem-lhe 400, 500, 600, 700, 800 euros, e instantaneamente você dirá: “então, mas eu não era dono desta m****?!”

Certo. Era e é. Relativamente à TAP, temos todos a memória reavivada pela recente comissão de inquérito. Sabemos que a vendemos e recomprámos para a voltar a pôr à venda e que, de caminho, pusemos lá quatro mil milhões de euros que serviram, entre outros, para pagar indemnizações milionárias a administradores amuados, despedimentos por whatsapp e bicicletas pelo ar. Trata-se de uma companhia “de bandeira”, que não só não discrimina positivamente os passageiros que a financiam através dos seus impostos, como na verdade os despreza, dirigindo-se-lhes em inglês, quando precisa de os contactar com informações importantes acerca dos seus voos (quando até as companhias privadas estrangeiras se dão ao cuidado mínimo de aplicar um software de tradução automática às mensagens que enviam). Mas do grupo SATA falamos menos e é uma pena. Porque melhor do que pagar uma companhia aérea pública para competir com os privados, só mesmo pagar duas companhias aéreas públicas para competirem uma com a outra.

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Sim. Se o/a meu/minha amigo/a ainda estiver nessa de vir aos Açores este Verão (a água anda a 26 graus, posso confirmar-lhe), pode meter-se num avião da TAP ou num da SATA/Azorean Airlines. São ambos seus – e ambos lhe vão exigir centenas de euros para voar duas horas dentro do seu país. Mas tem ainda outra hipótese: se não se importar de viajar com menos bagagem e só para uma das ilhas mais populosas, pode conseguir um voo mais barato através da Ryanair, empresa privada subsidiada pelo Governo Regional dos Açores para fazer 2000 voos por ano e, assim, também competir com as nossas companhias.

Ou seja, na prática, sucede o seguinte: pagamos a três companhias aéreas para fazerem em boa medida as mesmas rotas e, depois, ainda pagamos outra vez quando queremos usar uma dessas companhias. Mas há mais. O grupo SATA é composto por duas transportadoras: a SATA Air Açores, que efectua os voos entre as ilhas açorianas, e a Azorean Airlines, que efectua as ligações entre as ilhas e o resto do mundo porque, claramente, ainda não havia companhias áreas que chegassem para isso – não exactamente daquela cor. Depois de muitos anos de protestos dos açorianos e de promessas dos sucessivos governos, lá se arranjou um preço especial para os residentes no arquipélago, que eram, obviamente, quem mais sofria com os custos da insularidade: um máximo de 134 euros para ligações de ida-volta entre os Açores e o continente.

Tudo certo, certo? Errado. Porque, a partir desse dia, os voos que já eram invulgar e consistentemente caros – cerca de 300 euros – dispararam para os 400, 600, 800, 900 – aqui, o céu é mesmo o limite. O açoriano residente paga o preço exigido pela companhia, e depois é reembolsado pelo Governo na diferença entre esse preço e os 134 euros máximos que garantiram que lhe seriam exigidos. E assim, o açoriano residente cala-se e só resmunga a maçada de ter tido de avançar com o dinheiro e ir aos CTT levantar o reembolso, distraído do facto de que andamos todos, açorianos e não açorianos, residentes e não residentes, a bancar reembolsos de 400, 500, 600, 700 euros por cabeça, para fazer dois voos de duas horas.

E sabe o que é mais notável? Apesar de todas estas receitas, todas estas nossas companhias têm dívidas do tamanho de Boeings 747. Não era fácil, mas elas conseguiram. Consistentemente e ao longo de muitos anos, mesmo que as actuais administrações se esforcem por mudar o rumo.

Sim, cara leitora, caro leitor. Não faça por menos: doravante, apresente-se como dono de duas companhias aéreas – ou três, já nem sabe.  O ar de inveja do seu cunhado, o olhar de admiração da colega da amiga da sua prima, são mesmo a única coisa que ainda vamos lucrar com isto.

Agora, com licença. Vou só ali dar um mergulho e ler o meu Ruy Belo. Uma pessoa precisa de descansar a cabeça de tantas responsabilidades de gestão.