Com a idade, uma pessoa apanha-se a achar cada vez menos graça às criaturas que gostam de passar por malucas e a ter mais medo daquelas que o são de facto. Não sei, nem quero saber, a qual das categorias pertence Bruno de Carvalho, o presidente do Sporting. O que sei é que, voluntária ou involuntariamente, criou uma trapalhada muito mais grave do que as usuais trapalhadas do futebol, que, Deus sabe-o, são muitas. E, aparentemente, não se deu ainda conta disso. Porque alguém que comenta o que se passou em Alcochete, dizendo que foi “chato”, mas que “o crime faz parte do dia-a-dia”, manifestamente não percebeu aquilo que foi feito aos jogadores e à equipa técnica. Já agora, e depois de dois dias a ver televisão, não me parece que Jaime Marta Soares, o presidente da Mesa da Assembleia Geral, tenha igualmente estado particularmente bem. Com a agravante de ele ser também presidente da Liga dos Bombeiros. Não tranquiliza.

A corrupção no futebol nunca me preocupou muito, incluindo aquela de que agora o Sporting é agora acusado. Há outras corrupções mil vezes mais graves, como se sabe, e a imaginação não dá para tudo. A violência é outra coisa completamente diferente. Dir-se-á que a selvajaria no futebol, generosamente distribuída pelos vários clubes, conheceu já momentos de violência extrema. Claro, mas a imagem dos membros daquela delegação sportinguista do Hamas a aproximarem-se de Alcochete leva-nos a patamares diferentes. Uma imagem que nos faz dar graças por ninguém ter sido morto por aquelas bandas.

O que é que isto diz de Portugal? Não nos diz, creio, nada de particularmente novo sobre os adeptos portugueses. A barbárie de muitos deles é há muito conhecida e não constitui, para o bem e para o mal, nenhuma originalidade nacional. Dirá alguma coisa sobre o eventual fanatismo de gente mais pacata? Duvido. O futebol é um domínio onde, se a coisa se limitar ao convívio privado, a parcialidade, a indiferença para com a objectividade e até, e sobretudo, a alegria maligna com as desgraças dos outros, não fazem mal a ninguém. Dantes (sou do Porto) divertia-me imenso com os azares do Benfica. Hoje em dia é-me tudo muito mais indiferente, mas claro que não me reprovo retrospectivamente. Tenho é saudades desses pequenos prazeres fáceis.

A culpa será dos programas televisivos de meta-futebol? Disparate. Admito que haja entretenimentos mais saudáveis do que ver pessoas crescidas a irritarem-se umas com as outras por causa da bola ou a perorarem solenemente sobre a “verdade desportiva”. Mas, bem vistas as coisas, não é por aí que vem grande mal ao mundo. Além disso, em certas noites menos felizes até diverte. Saudades da antiga “Bancada Central” da TSF.

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Claro que se pode dizer que uma cultura que fomenta um interesse desproporcionado dos indivíduos por algo que não depende deles (a vitória do clube A ou B) tem algo de desrazoável. Bom era as pessoas preocuparem-se muito mais com com aquilo que depende delas, que é a condição primeira do exercício da deliberação, um exercício que é quase um outro nome da liberdade. Mas isso tem a ver com a nossa condição antropológica presente e não se pode mudar a cultura inteira por decreto.

Há, no entanto, uma classe que mais verosimilmente se candidata a responsabilidades em matérias de delinquência futebolística, a classe dos nossos virtuosos políticos. Em vez de manterem uma saudável distância que a dignidade da sua função exige, atropelam-se uns aos outros para ver qual mais ostenta o seu particular amor clubístico. A coisa é sem dúvida pagante em termos de votos, mas a atitude geral tem provavelmente uma mais profunda razão de ser: o gosto espontâneo pelo folclore e pelo namoro com o que pensam que é o povo, além da secreta suspeita que o que eles fazem é menos importante, para o povo em questão, do que aquilo que faz a gente do futebol.

Vê-los por estes dias a proclamar a sua indignação pelo episódio de Alcochete provoca um certo sentimento de irrealidade. Porque a prática sistemática de um populismo que não ousa dizer o nome cria uma boa parte das condições para que se crie uma cultura permissiva em relação às ilegalidades várias do futebol. Claro que isso não conduz de forma directa à violência e menos ainda à violência extrema de Alcochete. Mas faz alguma coisa para a contrariar? Certamente que não, até porque traz consigo uma palpável perda de autoridade. E a classe política não tem, desde há muito, a responsabilidade fundamental de a contrariar? Certamente que sim.